Por que e em que sentido dizemos que Dvořák é superior a Bruckner na música religiosa

Carlos Nougué



Como dito em O “Stabat Mater” de Dvořák, o ápice da música religiosa não litúrgica, “se Anton Bruckner é o ponto mais alto da música não litúrgica, é-o especialmente por suas Sinfonias [...]. Sua música religiosa não litúrgica é de fato belíssima, mas neste gênero o compositor a que se deve dar o primeiro posto é o tcheco Antonín Leopold Dvořák”. Expliquemo-lo por partes.

1) Anton Brukner é autor de três Missas, um Te Deum, diversos Salmos e diversos Motetos, etc. Estes Motetos (Pange, lingua,[1] Locus iste, Ave Maria, Os justi, Tota pulchra es, Maria, etc.) são não só belíssimos mas, cremos,[2] litúrgicos. O Te Deum é estupendo, e, entre as peças religiosas de Bruckner, é a preferida do próprio compositor. Os Salmos ainda requerem, de nossa parte, audição e reflexão mais detidas. Entre as Missas, a Segunda (em Mi menor), sem dúvida a superior, parece poder usar-se liturgicamente como Missa solene, episcopal ou papal, talvez com certa redução instrumental; logo, não a pomos em termos de comparação com a música não litúrgica de Dvořák. Quanto à Primeira (em Ré menor) e à Terceira (em Fá menor), também belíssimas,[3] não as conseguimos ver como litúrgicas; a Terceira até já foi comparada, com justa razão, à Missa Solemnis de Beethoven,[4] e parece que pode constituir com esta o ápice do subgênero Missa não litúrgica.[5]

2) Mas, tal como a Missa solemnis de Beethoven, e até como as de Schubert, estas duas Missas de Bruckner não foram compostas para o ofício na igreja do Mosteiro de St. Florian? Por que então dizemos que parecem não litúrgicas? Não o dizemos nós: mas o Papa São Pio X e, seguindo-o, o Papa Pio XII, que determinaram os estritos limites da música para dentro das igrejas.[6] De fato, todos esses compositores compuseram suas peças para usar-se dentro da igreja, liturgicamente, e sobretudo Bruckner. Perguntaram-lhe certa vez se tinha gostado da Messe solennelle de Berlioz, e ele respondeu: “Serve para a liturgia? Não? Então não é boa”. É que antes dos necessários e urgentes limites determinados por São Pio X (os quais apenas retomam o estabelecido em Trento, mas esquecidos havia séculos já) a distinção entre música religiosa litúrgica e não litúrgica não podia ser de todo clara, e para um católico tão fervoroso como Bruckner[7] o litúrgico acabava por confundir-se com o sentimento verdadeiramente piedoso. A Missa de Berlioz era dotada deste sentimento? Não. Logo, pensava Bruckner, não era boa para a Igreja, nem de modo algum. Havemos de dizer hoje nós: sim, não era boa de modo algum; mas ao menos duas das Missas do mesmo Bruckner tampouco (ao que parece) se podem usar liturgicamente.[8] Tudo isso invalida a música não litúrgica em si? Absolutamente não. Ao contrário, fixados os justos limites, a música religiosa para fora das igrejas é uma irradiação do centro da Religião para as atividades seculares: imagine-se que, após a Missa dominical, pudesse o católico entreter-se nos domingos com edificantes concertos com Missas, Oratórios e Cantatas de Bruckner, Dvořák, Beethoven, César Franck, Haendel e outros em vez de postar-se diante da televisão ou de entregar-se a outras diversões ilícitas... Seria ainda honrar o Santo Dia e ao Autor dos dias, porque, com efeito, a boa música religiosa não litúrgica é também um louvor a Ele.[9]

3) Ademais, todavia, estas Missas de Bruckner, por grandemente belas e edificantes que sejam, têm um caráter preciso, apontado com grande acerto por Otto Maia Carpeaux em sua História da Música:[10] são Missas-Sinfonia, razão por que havia de compor Bruckner suas nove incomparáveis Sinfonias-Missa. Encontrava assim nosso compositor seu leito próprio: o sinfônico, mas um sinfônico profunda e arraigadamente religioso. Como já se disse, a Criação, vista espacialmente, é o mais perfeito dos afrescos, e, vista temporalmente, a mais monumental das sinfonias. É o que é expresso, como por nenhuma outra, pela música sinfônica de Anton Bruckner; ele estava talhado para isto. E, como o centro da Criação sensível é o homem, não podia esta música sinfônica expressar senão o itinerário entre o mistério de seu nascimento e os umbrais da eternidade.[11]

4) Pois bem, grande compositor também sinfônico,[12] Dvořák não deixava todavia de ser romântico, conquanto fosse fervoroso católico.[13] Só Brukner e sua arte conseguiram, no século XIX, escapar a essa dicotomia. Mas o católico fervoroso e o grande talento de Dvořák impunham-se inequivocamente em sua música religiosa, e em particular em três peças: a cantata Stabat Mater e o Requiem,[14] por um lado, e, por outro lado, a Missa em Ré maior op. 86, talvez litúrgica solene. E impunham-se magnificamente: aquelas duas peças – de dimensões e traços de oratório – são de fato o ápice da música religiosa não litúrgica. Não pulsa nelas um sinfonista, como pulsa nas Missas de Bruckner; pode-se dizer, ao contrário e de certo modo, que o que a melhor música não religiosa de Dvořák tem de superior com respeito à ampla maioria do Romantismo se deve, antes, a que nela pulsa um católico fervoroso e grandíssimo compositor religioso.



[1] Vide “Pange, lingua”: (parte do) poema de Santo Tomás de Aquino em música de Anton Bruckner.

[2] Apenas “cremos” em razão do dito em DE RÉQUIENS (I): “Nós [...], laicos que somos, não temos luz de estado nem autoridade eclesiástica para decidir essa questão”.

[3] Vide especialmente o Agnus Dei da Primeira Missa e o Benedictus da Terceira Missa, de grande beleza e sublimidade.
[4] Vide “Missa solemnis op.123” – a redenção artística de Beethoven.

[5] Como foi possível a um Beethoven anticatólico compor tal beleza católica? Escreve ele em carta: “Compu-la pensando no Deus absolutamente transcendente do hinduísmo” (citamo-lo de memória)... A que leva a negação da Verdade: o deus do hinduísmo é que não é transcendente: do próprio Brahma provém, por uma razão misteriosa e por emanação ou destacamento, cada atmã ou alma individual. O Deus verdadeiro, sim, é que é de todo transcendente: a Criação não emana d’Ele, senão que Ele a tira de nada, ex nihilo. Mas insista-se na pergunta: como pôde compor tal beleza Beethoven? Como se tratava de peça para ser usada, de fato, numa Missa de entronização cardinalícia, Beethoven (tão contrariamente a toda a sua produção romântica) não desbordou os cânones músico-litúrgicos então vigentes, e, se se soma a isso seu enorme talento e, talvez, um, digamos, “sincero sentimento religioso” (em música não raro podem confundir-se sentimentos distintos mas de algum modo contíguos, o que é assunto propriamente filosófico e que requer lugar próprio), ter-se-á sua Missa solemnis. – Por seu lado, as Missas do mais equilibrado Schubert, sem dúvida também belas, padecem porém de um grave mal: não contêm, no Credo, as palavras “Et unam sanctam catholicam et apostolicam Ecclesiam”... Na Missa solemnis de Beethoven, é verdade, elas como que se perdem numa fuga musicalmente quase incomparável; mas ao menos estão ali. – Como já veremos, todavia, e apesar do uso que teve então, tampouco a peça de Beethoven é litúrgica.

[6] Vide APÊNDICE AO ARTIGO “DE RÉQUIENS (I)”.

[7] Em pleno século XIX e estivesse onde estivesse, o compositor austríaco ajoelhava-se para rezar nas horas do Ângelus.

[8] Em verdade, Santo Agostinho já havia determinado com precisão, em seu De musica, os limites para a música litúrgica: há de ser bela para enlevar as almas até o sentido e a participação do Sacramento, mas não tão sensivelmente bela que antes distraia do Sacramento.

[9] Permita-se-nos indicar ainda um antigo escrito nosso: Contra Impugnantes: Intentio cordis.

[10] Com a qual, no entanto, não podemos concordar em muitos pontos.

[11] Vide Um acabamento da inacabada “Nona Sinfonia” de Bruckner.

[12] Vide Dvořák: Symphony No. 9 "From The New World" / Karajan · Vienna Philarmonic.

[13] Com efeito, estritamente falando, ou seja, por seu fundo doutrinal e sua maneira majoritária de expressar-se nas artes, o Romantismo está nos antípodas do Catolicismo.

[14] Vide O "Requiem" de Antonín Dvořák - perfeição formal e sublimidade religiosa. – Seu Te Deum op. 103 não nos parece tão bem conseguido.

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