O “Górgias” e o papel do intelectual na Cidade
Platão
Sidney Silveira
Numa sociedade decadente, a vilania dos intelectuais acaba por tornar-se o sofisticado modelo para os atos insanos da multidão. Ela invade os costumes, corrompe os valores e, com o passar do tempo, chega a entranhar-se nas leis de forma tal, que a regeneração da Cidade torna-se impraticável, e não nos resta senão assistir ao pungente espetáculo do declínio civilizacional. Ciente disso, Platão exprime no Górgias — um diálogo simplesmente sublime — a questão capital para toda filosofia política que se queira realista: os jovens (entre os quais se encontram os futuros líderes) serão educados pelos truques retóricos do sofista ou pela sabedoria do filósofo que tenta incutir em suas almas o amor ao Bem? Que Paideia dará forma à coletividade humana?
Ora, quando a reforma dos costumes depravados é submetida ao escárnio pelos próprios intelectuais que deveriam estimulá-la, é sinal de que o acanalhamento ultrapassou a todos os limites e a crença geral é a de que qualquer homem, quando for a ocasião propícia, cederá aos atos mais vis. A propósito, é justamente esta a argumentação de um dos interlocutores de Sócrates no Górgias, o jovem Polo, que chega a enumerar as “exemplares” façanhas de Arquelau, tirano que governou a Macedônia depois de assassinar o tio Alcetas e o primo Alexandre, herdeiro do trono. O discípulo de Górgias, tomando Sócrates por hipócrita, constrange o mestre (que até então se eximia de responsabilidade sobre o mau uso dos seus ensinamentos, por parte dos alunos) ao elogiar a felicidade de Arquelau em conseguir entrar na posse de tudo o que queria, mesmo sendo protagonista dos atos mais cruéis.
Vale a pena aludir à famosa resposta de Sócrates a Polo:
— “(...) Consideravas Arquelau feliz por haver perpetrado os maiores crimes sem sofrer penalidade alguma, enquanto eu, de minha parte, era de parecer que não só Arquelau, mas qualquer indivíduo que não for punido por seus crimes deve ser considerado como o mais infeliz dos homens, e que, em qualquer circunstância, quem comete alguma injustiça é mais infeliz do que a vítima dessa injustiça (...).
A tese central deste ponto do diálogo platônico é a de que o homem mau, por mais que seja cumulado de prazeres, é intrinsecamente infeliz, enquanto o homem bom, ainda que viva sob o peso das maiores injustiças, é feliz. E mais: para quem comete um crime, a falta de punição é o pior dos males que pode suceder, pois não livrará a sua alma da injustiça — para a qual o castigo é a verdadeira medicina que, com o tempo, trará a cura pela dor. Neste contexto, a conclusão de Sócrates é impecável: o poderoso Arquelau é mais infeliz do que as suas vítimas, e o é ainda mais por escapar a todas as penalidades nesta vida.
A discussão sobre o papel da retórica na Pólis, que era a princípio o mote para o Górgias, desdobra-se num conjunto de questões fundamentais que fazem deste diálogo um dos mais importantes escritos pelo grande gênio da Academia: o que é a arte, o que é a beleza, qual o papel do mestre (diríamos nós, do intelectual), etc. Particularmente no tocante a este último ponto, vale dizer que, quando a derrota impingida pelos argumentos do adversário não acende na alma do intelectual a menor fagulha de decência, mas, ao contrário, leva-o a ataques irascíveis contra os que apontaram os seus erros, nada mais se pode fazer por este coração endurecido. O erro invadiu o seu núcleo espiritual e a única coisa que vale, para ele, é a vitória a qualquer custo. Nestes casos, a cura será muitíssimo mais difícil, e, como cristãos, poderíamos muito bem dizer que, após tantos pecados contra o Espírito Santo, só um milagre livrará tal homem da perdição.
Sendo, pois, o Estado nada mais nada menos do que o reflexo, em ponto grande, da alma da maioria dos seus habitantes, se por desgraça os intelectuais torpes tiverem nele voz ativa — liberdade de expressão, diríamos nós —, a decadência será certa e acachapante, dada a sua influência sobre tantos incautos. Daí a importância de refutá-lo publicamente, para que os seus erros não adquiram direitos políticos. Na prática, esse prevaricador travestido de mestre acaba por servir aos representantes (públicos ou privados) da ordem corrupta. E não se pense que hoje esse tipo intelectual de miolo mole se encontra apenas entre os socialistas, pois os há em profusão muito maior entre os liberais, sejam estes declarados ou enrustidos. Os declarados em geral centram os esforços de sua sofística nos temas econômicos ou políticos; os enrustidos parasitam a Igreja e corrompem a sacra doutrina inoculando conceitos filosóficos diametralmente contrários à fé. São organizados, diligentes, profissionais.
Numa sociedade decadente insuflada por parlapatões com pretensões filosóficas, o que está em risco é a possibilidade de verdade (ou seja: a própria inteligibilidade dos entes, captável pela potência superior da alma humana) — e a algumas poucas pessoas será dado testemunhar isto. Nesse reino da opinião impositiva que não admite objeções, não há lugar para nenhuma moral. Mas é justamente em tal situação que rebrilha a importância do filósofo, aqui entendido em seu sentido mais elevado: como alguém que levará às últimas conseqüências o sagrado dever de defender a verdade até o fim e em quaisquer circunstâncias, ainda que isto lhe custe a vida.
Após a época de Sócrates e Platão, a Igreja levará esta bela visão ao ápice, com a defesa do precioso depósito da fé. E com o sangue dos mártires que, submetendo-se às maiores crueldades, ofereceram as suas almas àquele que é a própria Verdade encarnada.
Contra Impugnantes: O “Górgias” e o papel do intelectual na Cidade
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