“O indivíduo e o estado”, por Pio XII

«Onde se nega a dependência do direito humano ao direito divino, onde não se apela senão a uma ideia mal segura de autoridade meramente terrena, onde se reivindica uma autonomia fundada apenas numa moral utilitária, ali o próprio direito humano perde justamente, nas suas aplicações mais gravosas, a sua força moral, que é a condição essencial para ser reconhecido e para exigir sacrifícios, se forem precisos.
É preciso reconhecer: é verdade também que o poder assim alicerçado em base tão frágil e oscilante, mercê de circunstâncias contingentes, pode às vezes conseguir sucessos materiais que assombram observadores não muito profundos; mas há de chegar a hora em que triunfará a lei inelutável que fere tudo o que tenha sido construído sobre uma latente ou clara desproporção entre a grandeza do êxito material e exterior e a fraqueza do valor interior e da sua base moral. De proporção que subsiste sempre quando a autoridade pública desconhece ou renega o domínio do Sumo Legislador que, se dá o poder aos governantes, não deixa de assinalar-lhes e determinar-lhes os limites.

Quer o Criador que exista a soberania civil, para que regule a vida social de acordo com as prescrições de uma ordem imutável nos seus princípios universais, para que torne mais fácil à pessoa humana, na ordem temporal, o conseguimento da perfeição física, intelectual e moral, e para que a ajude a conseguir o fim sobrenatural.
Nobre prerrogativa e missão dos estados é, pois, o fiscalizar, auxiliar e ordenar as atividades particulares e individuais da vida nacional, fazendo-as convergir harmonicamente para o bem comum, que não pode ser determinado por concepções arbitrárias, nem pode receber a sua norma primariamente da prosperidade material da sociedade, mas sim do desenvolvimento harmônico e da perfeição natural do homem, a quem, como meio, é pelo Criador destinada a sociedade.
Considerar o estado como fim a que tudo deve ser endereçado e subordinado, seria o mesmo que prejudicar a verdadeira e duradoura prosperidade das nações. E dá-se isto quando tal domínio ilimitado seja atribuído ao estado, como mandatário da nação, do povo ou mesmo de uma classe, ou quando o estado o pretende, como senhor absoluto, independentemente de qualquer mandato.
Com efeito, se o estado se arroga o uso e dispõe das iniciativas privadas, estas, cujo governo tem suas bases em normas internas delicadas e complexas, que garantem e asseguram o conseguimento do escopo que lhes é próprio, veem-se danificadas com desvantagem do bem público, por serem destacadas do seu ambiente natural, ou seja, da responsabilidade ativa particular.
Também a primeira e essencial célula da sociedade, a família, com o seu bem-estar e desenvolvimento, correria então o risco de ser considerada pertença exclusiva do poder nacional, esquecendo-se assim que o homem e a família são, por natureza, anteriores ao estado e que a ambos deu o Criador forças e direitos, confiando-lhes também uma missão correspondente às incontestáveis exigências naturais de cada um.
A educação das novas gerações não visaria um desenvolvimento equilibrado e harmônico das forças físicas e de todas as qualidades intelectuais e morais, mas sim uma formação unilateral daquelas virtudes cívicas julgadas necessárias para o conseguimento de sucessos históricos; ao contrário deixariam de ser inculcadas aquelas virtudes que dão a sociedade o perfume de nobreza, de humanidade e de respeito, como se elas diminuíssem o brio do cidadão.
Diante de Nossos olhos aparecem em toda sua dolorosa clareza os perigos que tememos possam advir a esta geração e às gerações futuras do desconhecimento, da diminuição e da progressiva abolição dos direitos próprios da família. Por isto é que Nos erguemos em defensores de tais direitos com plena consciência do dever que Nos impele o Nosso ministério apostólico.
As angústias dos nossos tempos, tanto interiores como exteriores, tanto materiais como espirituais, os múltiplos erros com suas inúmeras repercussões, se há alguém que os experimenta amarissimamente é a minúscula e nobre célula familiar. É preciso, às vezes, uma grande coragem e, na sua simplicidade, um heroísmo digno de grande admiração e respeito, para suportar as durezas da vida, o peso cotidiano das misérias, as indigências e estreitezas que crescem em medida jamais experimentada, e por vezes sem razão nem necessidade. Quem se ocupa das almas e recebe as confidências dos corações, bem conhece as furtivas lágrimas de muitas mães, a dor resignada de inúmeros pais, e as muitas amarguras, que nenhuma estatística cita nem poderá citar, vê com verdadeira preocupação crescerem sempre mais esses sofrimentos, bem sabendo que as potências da subversão e destruição estão vigilantes e prontas a servir-se disso para os seus tenebrosos desígnios. Quem tenha um pouco de boa vontade e olhos abertos não poderá por certo recusar ao estado, nas circunstâncias extraordinárias em que se acha o mundo, um direito, mais amplo e excepcional, para ocorrer às necessidades do povo. Mas a ordem moral, por Deus estabelecida, exige também em tais contingências que se indague com maior sutileza e seriedade se tais providências são realmente necessárias, segundo as normas do bem comum.
Em todo caso, quanto mais onerosos são os sacrifícios materiais pelo estado exigidos dos indivíduos e das famílias, tanto mais sagrados e invioláveis devem ser os direitos da consciência. Poderá pretender bens e sangue, nunca porém a alma por Deus redimida. A missão que Deus confiou aos pais de se interessarem pelo bem material e espiritual da sua prole e de dar à mesma uma formação harmônica e repassada de verdadeiro espírito religioso, não lhes poderá ser arrebatada sem grave lesão do direito. Esta formação deve certamente ter por escopo também preparar a juventude para cumprir com inteligência, consciência e galhardia aqueles deveres de patriotismo que dá à pátria terrestre a devida medida de amor, de dedicação e colaboração. Mas, por outra parte, uma formação que se esqueça, ou o que é pior ainda, propositadamente descure de dirigir os olhos e o coração da juventude para a pátria sobrenatural, seria uma injustiça contra a juventude, uma injustiça contra os inalienáveis deveres e direitos da família cristã, um excesso a que se deve remediar, mesmo em favor do bem público e do estado. Semelhante educação poderia parecer àqueles que por ela são responsáveis fonte de maior força e vigor; na realidade seria o contrário e as tristes consequências encarregar-se-iam de prová-lo. O delito de lesa-majestade contra o Rei dos reis e o Senhor dos dominadores perpetrado por uma educação indiferente ou contrário ao espírito cristão, a inversão do “deixai que as crianças venham a mim”, acarretaria amaríssimos frutos. Ao contrário, o estado que tira aos dilacerados corações dos pais e das mães as suas preocupações e restabelece os seus direitos, mais não faz que promover a própria paz interna e lançar as bases de um futuro mais feliz para a pátria. As almas dos filhos que Deus deu aos pais, assinaladas no batismo com o selo real de Cristo, são um depósito sagrado por Deus vigiado com cioso amor. O mesmo Cristo que disse “deixai que as crianças venham a mim” ameaçou também, não obstante sua bondade e misericórdia, terríveis males àqueles que escandalizam os prediletos do seu coração. E que escândalo mais nocivo e duradouro às gerações do que uma formação da juventude dirigida para uma meta que afasta de Cristo, caminho, verdade e vida, levando-a a uma simulada ou manifesta apostasia? Este Cristo do qual querem alienar as gerações juvenis presentes e futuras, é o mesmo que recebeu do seu eterno Pai o poder no céu e na terra. Em sua mão onipotente tem ele o destino dos estados, dos povos e das nações. A ele compete diminuir-lhes ou prolongar-lhes a vida, o desenvolvimento, a prosperidade e a grandeza. De tudo o que existe sobre a terra, somente a alma tem vida imortal. Um sistema de educação que não respeitasse o recinto sagrado da família, protegido pela santa lei de Deus, que procurasse minar-lhe os alicerces, que fechasse à juventude o caminho que conduz a Deus, às fontes de vida e de alegria do Salvador, que considerasse o apostatar de Cristo e da Igreja como símbolo de fidelidade ao povo ou a uma determinada classe, pronunciaria contra si mesmo a sentença de condenação, e experimentaria, a seu tempo, a inelutável verdade das palavras do profeta: “Aqueles que se afastam de vós serão escritos na terra”.»


[Da Encíclica do Papa Pio XII Summi Pontificatus, de 20 de outubro de 1939.]

SPES - Santo Tomás de Aquino: “O indivíduo e o estado”, por Pio XII