Andorra: o principado esquecido, herdeiro da organicidade medieval




Você conhece um principado que há sete séculos vive em paz, resguardado dos conflitos que não têm cessado de ensanguentar a terra?

Uma nação que soube conservar suas tradições ancestrais, abrindo-se largamente para o progresso moderno?

Ela ocupa um modesto território de 468 km2, no coração da Europa entre a França e a Espanha, aninhada no seio da cordilheira dos Pirineus.

Você adivinhou: trata-se dos Vales de Andorra – les Valls d'Andorra, para empregar o catalão, idioma falado do país.

Convenhamos que é assunto mais frequente, na imprensa internacional, Mônaco e Liechtenstein, do que esse curioso principado montanhês, desconhecido e injustamente esquecido.

Porém, cada verão, milhares de turistas apressados atravessam as fronteiras andorranas para comprar, livres de imposto, bebidas alcoólicas ou aparelhos eletrônicos.

Mas, sem dúvida, quase não têm tempo de estudar as instituições nascidas na Idade Média e que sobreviveram até nossos dias, quase inalteradas...





Certos autores, desorientados pela originalidade de seu sistema político, têm falado de “República de Andorra”.

Mesmo sendo muito democrático o funcionamento do Estado, Andorra é bem um principado, ou, para ser mais preciso, um “co-principado”.

Com efeito, até muito recentemente dois “co-principes”, de igual dignidade, exercem uma soberania consagrada pela História. Um deles é o bispo de Urgell, Espanha. O outro é o presidente da França.

Mas como se chegou a essa situação singular? Isso merece, certamente, uma explicação.

Uma legenda dourada conta que o próprio Carlos Magno concedeu a liberdade aos andorranos, para os recompensar por o haverem ajudado a combater os mouros da Espanha.

O hino nacional proclama ufanamente essa filiação imperial, ao menos hipotética:

“El grau Carlemany, mon Pare, dels Alarbs me desllivrá... O grande Carlos Magno, meu pai, dos árabes me livrou...”




Historicamente, é a partir do século IX que os bispos de Urgell estendem pouco a pouco sua autoridade temporal sobre as seis paróquias que formam o território do atual principado.

A 8 de janeiro de 1176, os andorranos assinaram uma concordata com o bispo Bernardo Sanç e o reconheceram por seu suzerano.

Incapaz de assumir, só ela, a proteção de seus súditos, a Igreja de Urgell cedeu Andorra em feudo aos condes de Caboet.

Por casamento, os direitos destes passaram à casa de Caste1bó. Em 1208, Roger-Bernard II de Foix desposava a última herdeira dos Castelbó.

Abria-se, então, um período sombrio de lutas cruentas, opondo os bispos de Urgell a seus poderosos vassalos, os condes de Foix.

A 8 de setembro de 1278, consciente de sua debilidade militar, o bispo Pére d’Urtx concluia um primeiro ‘paréage’ com seu adversário, Roger-Bornard III.

Este acordo de circunstância, delimitando as jurisdições respectivas dos bispos de Urgell e dos condes de Foix, deveria ter uma espantosa longevidade. Junto com o segundo ‘paréage’, de 1288, constitui ainda hoje as bases da independência e da especificidade dos Vales andorranos.




Se os bispos de Urgell conservaram suas prerrogativas até o presente, os condes de Foix cederam as deles, em consequência de alianças matrimoniais, aos soberanos da Navarra.

Quando, em 1589, Henrique III da Navarra tornou-se Henrique IV da França, uniu à Coroa seu co-senhorio pirenaico.

É assim que os atuais presidentes da república (da França), na qualidade de continuadores (sic) da monarquia e remotos sucessores (sic!) dos condes de Foix, levam o titulo de co-príncipes de Andorra.

No decurso dos séculos, à sombra protetora de seus dois soberanos, de seus “dois valentes tutores”, uma nação iria nascer e desenvolver suas liberdades. Mas, no conjunto, são as cartas do século XIII que definem sempre o funcionamento dos poderes públicos.

Os co-principes são representados nos Vales, respectivamente, por um ‘viguier’ (delegado da autoridade) episcopal e um 'viguier’ francês, os quais exercem funções judiciárias.

Ademais, dois delegados permanentes – um tendo sede em Urgall, o outro sendo o prefeito de Perpignan – têm poderes legislativo e desempenham uma função de recurso.


Igreja de Santo Estevão

Cada 'viguier’ escolhe dois “bayles” (bailios) ou juízes de primeira instância. Para as apelações, existe um juiz das apelações, nomeado alternativamente por cada um dos co-príncipes.

Outras jurisdições, regidas pelos costumes, em matéria cível e criminal, aumentam ainda um emaranhado de competências que não deixa de fazer lembrar a complexidade de nosso Ancien Régime.

Instância suprema do país, o Conselho Geral des Vales é eleito por sufrágio universal por quatro anos e é composto de vinte e oito conselheiros. Este designam um síndico e um sub-síndico que podem ser quaisquer andorranos, mesmo não membros do Conselho.

Esse Parlamento faz as leis, recebe e distribui os impostos indiretos... porque não há impostos diretos. Por ouro lado, a reforma de 1951 instituiu um chefe de governo e um ministério.




Cada ano, o síndico geral, em grande gala, leva a um dos co-príncipes em alternância o tributo feudal da “questia”.

Isto é, para o bispo de Urgell, uma soma de 460 pesetas; e para o presidente da república francesa, 960 francos, aos quais se juntam rendimentos em espécie: doze queijos, doze capões, doze perdizes e seis presuntos!

Seria talvez demasiado fácil debicar dessas tradições democráticas desusadas.

Não acompanharam elas o desenvolvimento pacífico dos Vales de Andorra, enquanto outras nações provavam dos frutos envenenados da violência e da opressão?

Fiéis a seus co-príncipes, os andorranos permaneceram também fiéis à Fé de seus antepassados.

Sua festa nacional não comemora nenhum feito de armas, nenhum acontecimento revolucionário, mas celebra a coroação da Virgem de Meritxell, Padroeira do país.

Na manhã de 8 de setembro de cada ano, o muito Ilustre Senhor síndico, o sub-síndico e os conselheiros gerais; o muito Ilustre chefe de governo; os Honoráveis cônsules de paróquias e os conselheiros de comunas vão em peregrinação ao santuário marial.

Assim vive Andorra, “a única filha do imperador Carlos Magno, crente e livre”...

(Fonte: Phitippe Delerme, Point de Vue, No. 2148, de 29 de setembro de 1989, pp. 40 e 41)















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