O estudo do tradicionalismo faz-se há algum tempo em Portugal e só muito recentemente no Brasil. O que já é um indicativo da autoconsciência respectiva da diversidade de sua relevância quando se toma cada um dos países isoladamente. Não se deve confundir essa preocupação com o estudo do conservadorismo, efetivado no Brasil com invulgar maestria por Paulo Mercadante em A consciência conservadora no Brasil (Rio, 1965). Mercadante analisou a estratégia conservadora a nível político, econômico e social, desvendando seus fundamentos filosóficos no período imperial. Nosso propósito é diverso e parte do reconhecimento de que entre os conservadores há um grupo de feição muito nítida, filiado a uma peculiar ideologia e filosofia: os tradicionalista., O agrupamento considerado teve no Brasil reduzida expressão política, sendo a maioria dos conservadores brasileiros partidários do liberalismo doutrinário (1) de Royer Coilard e Victor Cousin. ainda não cabalmente distinto do liberalismo radical jacobino inspirado em Rousseau e na praxis da Revolução Francesa, como seria o caso do tradicionalismo.
O tradicionalismo português nasceria no período da Viradeira de d. Maria I, considerando-se a Pascoal de Meio Freire seu legítimo fundador (2). Desde então, torna-se essa vertente caudatária do caminho seguido pela história política, vinculando sua sorte à do absolutismo monárquico, em luta contra o liberalismo nas suas diversas expressões. No ciclo inicial essa aliança parece ter sido benéfica. Tornou, entretanto, relativamente efêmera a vitória fulminante que parecera haver alcançado.
A partir da invasão francesa, os absolutistas conquistam inegável apoio popular, desde que assumem a bandeira do nacionalismo. Os liberais vêem-se identificados com o invasor estrangeiro. A derrota decorrente da Revolução do Porto --que leva à promulgação da Carta de 1822 (3) e à independência do Brasil-- seria temporária. Desde então o absolutismo identifica-se plenamente com o miguelismo --assim chamado em decorrência da liderança de d. Miguel, irmão de d. Pedro, regente no Brasil e herdeiro da Coroa-- e mantém virtualmente o poder desde o golpe de maio de 1823 e, de modo integral, a partir de 1828, embora de semelhante desfecho tivesse resultado a guerra civil. Derrotado finalmente em 1834, com o exílio de d. Miguel, ingressa o tradicionalismo português na fase de franco declínio, já que escolhera a arena política. E, nesta, o grande eixo de debate, até os meados do século, seria entre liberais moderados e radicais, e, com a consolidação dos primeiros, a emergência crescente dos sentimentos republicanos, de permeio com a propaganda cientificista e das idéias socialistas.
No ciclo ascesional do tradicionalismo observa-se fraca elaboração teórica, predominando a atividade meramente panfletária e laudatória. É o período em que se publicam, em Portugal a Dissertação a favor da monarquia (1799) do marquês de Penaiva; em que aparecem os escritos anti-franceses de José Acúrcio das Neves (1808/1817); quando José Agostinho de Macedo divulga panfletos contrários à Revolução Francesa (1809-1812) e publica, finalmente, a Refutação metódica das chamadas bases da Constituição política da monarquia portuguesa (1824); ou ainda Os povos e os reis (1825), de Madre de Deus: e, no Brasil, a obra de igual teor do Visconde de Cairu. Na época do declínio é que o tradicionalismo português encontra seu grande teórico: José da Gama e Castro.
Gama e Castro (1795-1873) foi médico de d. Miguel, oficial junto a seu exército, jornalista, tradutor do Federalista e de Guizot. Durante sua estada no Brasil publicou O Novo Príncipe ou o espírito dos governos monárquicos (Rio, 1841; apesar de indicar que se trata de 2ª edição, é quase certo corresponder à primeira), obra que o coloca na primeira plana entre os teóricos tradicionalistas e contra-revolucionários em Portugal, não só em seu século mas igualmente no atual, quando a florescência dessa vertente ocorre de modo pleno. E como tal foi reconhecido desde cedo pelas publicações do Integralismo Lusitano que nele enxergavam um dos “Nossos Mestres”, título da Antologia de Fernando Campos (1924). Como destaca Luis Manuel Reis Torgal em opulenta monografia dedicada a Gama e Castro: “Ninguém como ele em Portugal sintetizou de forma tão completa, tão sistematizada, tão característica o pensamento tradicionalista e contra-revolucionário” (4).
Torgal entende que talvez se pudesse considerar Faustino J. da Madre de Deus mais original; ou Acúrcio das Neves mais esclarecido. Contudo, conclui que o mais típico teria sido Gama e Castro.
Esta sua obra, apesar de ser a mais teórica da corrente portuguesa, não é um tratado abstrato nem tal seria possível face ao caráter “experimental e histórico” da Escola.
As influências marcantes são Burke, Vico e Montesquieu, tomado como fautor do liberalismo. Por isto, a obra assume o seu título de Mequiavel e objetiva constituir-se num guia para a conservação da monarquia absoluta.
Gama e Castro empreende a justificativa do sistema monárquico recorrendo à história e à experiência dos povos, criticando toda espécie de apriorismo dedutivista.
A monarquia origina-se diretamente das famílias, tendo se verificado o mesmo por toda a parte. As famílias --que tiveram originariamente o chefe, os filhos e os fâmulos-- fizeram nascer os estados, onde as denominações passam a ser rei ou monarca, nobres e plebe. Examinando-se o curso histórico dos povos verifica-se que a particular organização política que chegaram a adotar dependia das circunstâncias concretas. Uma nação comerciante organiza-se de muito diferente maneira que uma nação agrícola; o mesmo podendo-se dizer da posição geográfica, se marítima ou continental. Assim, quando se diz fazer a constituição, trata-se de declarar direitos pre*existentes ou relações anteriormente formadas. A constituição de uma nação não faz a posição política dessa nação, explica-a.
Examinada a experiência européia verifica-se que a estabilidade e felicidade das nações não depende da forma de sua constituição mas das qualidades do príncipe.
A par dessa exaltação do testemunho da história, Gama e Castro detém-se no exame da discussão moderna a respeito da origem do poder dos monarcas, a legitimidade da monarquia, etc.
A obra não se limita a essa parte doutrinária, passando à formulação de princípios e diretrizes para a ação, a partir da análise das causas da Revolução de 1820 e das suas conseqüências, para apontar os remédios.
A própria questão das Cortes cuida de solucioná-la à luz da tradição portuguesa, que busca sistematizar num projeto de lei. E assim no que respeita à política religiosa; à nobreza; à força pública; à instrução e à política econômica.
O Novo Príncipe foi reeditado no Porto, em 1921, e em Lisboa, em 1945. Neste século, tradicionalistas portugueses e brasileiros reconheceram-lhe a importância, figurando com destaque na obra de Fernando Campos --Os nossos mestres ou breviário da contra-revolução (Lisboa, 1924). Além do livro de Luís Torgal, antes citado, mereceu ainda estes estudos: O pensamento contra-revolucionário em Portugal (Lisboa, 1924), de Fernando Campos (tomo 2; págs. 81-124) e José da Gama e Castro. Biografia: tópicos fundamentais de sua filosofia política (Coimbra, 1961), de Maneula Palha de Araujo.
O tradicionalismo brasileiro, ao contrário do português. aceitou com relativa tranqüilidade o sistema monár*quico-constitucional instaurado no pais e iria limitar-se a combater o racionalismo, no plano teórico. O eixo central seria a refutação ao espiritualismo eclético, ao qual a intelectualidade iria aderir prazerosamente.
O idealizador dessa linha foi d. Romualdo Seixas (1787/1860)). Primaz do Brasil desde fins dos anos vinte, homem enérgico que enfrentou Feijó quando Regente todo poderoso. O império deu-lhe o titulo de Marquês de Santa Cruz. Buscou atrair a elite brasileira para uma opção tradicionalista limitada ao terreno filosófico. Para este fim criou um semanário intitulado Noticiador Católico; fez circular curioso opúsculo --As sombras de Descartes, Kant e Jouffroy a mr. Cousin (5) e encomendou um compêndio de filosofia a Frei Itaparica. Em relação ao ecletismo teria oportunidade de fazer esta advertência à mocidade: “esteja de sobreaviso e não se deixe iludir das quiméricas especulaçoes de um sistema que, fugindo talvez dos escolhos do sensualismo, vai naufragar e perder-se nos ultimos limites de um idealismo exagerado; ou, na frase de Schelling, em uma filosofia de pura abstração, que diviniza o nada e reduz o cristianismo e a vida a uma vã fantasmagoria”.
Da ação de d. Romualdo resultou a formação de grupos tradicionalistas em Pernambuco, no Maranhão e em São Paulo. Talvez para dar curso a semelhante projeto, o bispo de São Paulo iria importar um frade capuchinho espanhol, Frei Firmino de Centelhas, que embora destoando do tom geral ao chamar a monarquia constitucional de “mentira contínua e perpétua contradição”, centraria a sua pregação, resumida no Compendio de Filosofia Católico-Racional(1864,, na afirmativa de que a autêntica filosofia é uma doutrina “chã, simples e acessível a todas as inteligências mesmo ordinárias, porquanto o dever do verdadeiro filósofo, nas ciências metafísicas e morais que formam o objeto da filosofia, não é inventar as verdades fundamentais, que já são conhecidas e nunca se perderam totalmente, mas demonstrá-las simplesmente, desenvolvê-las, conservá-las puras e intactas, como as recebeu no princípio por tradição e revelação”.
Na Faculdade de Direito de São Paulo o tradicionalismo iria encontrar representante entusiasta na pessoa de José Maria Benevides Sá Correia, autor de compêndios de direito e de uma Análise da Constituição Política do Império do Brasil (1891).
O grupo pernambucano chegou a reunir professores de grande nomeada como Pedro Autran da Mata e Albuquerque, que travaria duas polêmicas célebres, a primeira com Antonio Pedro de Figueiredo. figura exponencial da filosofia eclética, e com Tobias Barreto. logo na fase inicial de seu aparecimento. Esse grupo logrou a adesão dos irmãos Souza: José Soriano de Souza (1833-1895), pioneiro da difusão do tomismo. no século passado. Braz Florentino Henriques de Souza, que iria fundamentar a idéia do poder moderador segundo pressupostos tradicionalistas, em contraposição às doutrinas dominantes no país; e ainda um outro (Tarquínio Bráulio Amarantho de Souza, espécie de porta-voz tradicionalista no Parlamento).
Dentre os tradiconalistas brasileiros, Soriano de Souza seria o único que chegaria a formular de maneira mais ou menos acabada um projeto político. sem maiores conseqüências, contudo. Em decorrência da Questão Religiosa e da prisão dos Bispos, ocorreu-lhe propugnar pela organização de um Partido Católico, e o faz em carta aberta ao Conselheiro Zacarias de Goes e Vasconcelos (Recife. Tipografia da União. 1874. opúsculo de 37 páginas). “Para esse partido, escreve, não faltam elementos: temos-los em grande cópia. porque a imensa maioria dos brasileiros é católica. Mas eles estão dispersos, isolados e inativos. Mister é pois que apareça uma força capaz de reuni-los e de imprimir-lhes unidade e direção, sem o que não é razoável esperar a formação de um partido”.
Pouco mais tarde, em 1877, Soriano publicaria o Ensaio de programa do Partido Católico no Brasil,
Pode-se dizer que os tradicionalistas brasileiros no século XIX tinham uma consciência clara de um conjunto de teses filosóficas, religiosas e de caráter social, em torno das quais desenvolveram ensaística de certa magnitude. Tais teses consistiam no menosprezo ao racionalismo e ao liberalismo; na defesa da monarquia legítima; no empenho em prol da união da Igreja e do Estado e pela proscrição do casamento civil; em favor da liberdade de imprensa e de pensamento em nome dos direitos da verdade. Passando ao nível político, entretanto, excetuando a preferência pela monarquia, não se observa maior clareza nas opções. A monarquia constitucional vigente era francamente tolerada, do mesmo modo que o regalismo que reduzia o padroado à condição de funcionários do Estado. E quanto a ter uma atenção política estruturada. como queria Soriano de Souza. não chegou a ser considerada. O grupo. embora atuante, era francamente minoritário e nunca teve maior proximidade com o poder.
O curioso é que a República tenha sido, tanto no Brasil como em Portugal. um elemento reanimador do tradicionalismo, Em Portugal teve mesmo o efeito de retirá-lo do longo eclipse, a que fora lançado. pela excessiva vinculação ao miguelismo. E desta vez para trilhar uma linha ascensional somente interrompida neste último quartel do século. Ao contrário do Brasil onde nunca chegaria a se transformar em elemento polarizador.
A morte, em 1900, de dois intelectuais de grande nomeada, um brasileiro e outro português, Eduardo Prado e Eça de Queiroz. simboliza um novo ciclo de aproximação das duas culturas irmãs, desta vez no campo do tradicionalismo, a exemplo do que já se verificara no que toca ao positivismo. Pois Eduardo Prado, se não seria bem sucedido na pregação tradicionalista, em sua terra natal, teria a virtude de converter às suas idéias a grande figura das letras portuguesas, conversão que produziria uma de suas obras tornadas clássicas — A Ilustre Casa de Ramires. Embora esse contato estivesse fadado a propiciar desdobramentos, a retomada das teses tradicionalistas, seu aprofundamento e difusão, seria fenômeno algo tardio. O apanágio do século XIX. na cultura luso-brasileira. consistiria no culto à idéia liberal.
Notas de Ubiratan Macedo
(1) Cf. nosso estudo “O visconde de Uruguai e o liberalismo doutrinário no Brasil” in As idéias políticas no Brasil, Ed. Convívio, 1979, vol. 1; e El liberalismo doutrinário, de Luis Diez dei Corral, Madrid, 1945.
(2) Ver, nesta coletânea, ensaio de Antonio Paim “O ponto de partida comum”.
(3) Estabeleceu claramente a supremacia do poder parlamentar sobre o poder real, com o sistema unicameral e o princípio de que a soberania vem da nação, por seus representantes, e não do rei.
(4) Tradicionalismo e contra-revolução. O pensamento e a ação de José da Gama e Castro. Coimbra, Universidade Coimbra, 1973, pag. 309.

(5) Parcela substancial desse folheto consta da coletâne Corrente eclética na Bahia, Rio de Janeiro, Documentário. 1979.
(Transcrito de Ciências Humanas, Rio de Janeiro, Universidade Gama Filho, v. 5, n. 16;jan./mar., 1981, págs. 17-19)

Embora na nota que inseriu, a esse propósito, refira Ubiratan Macedo a texto de minha autoria, o estudo da obra de Pascoal de Melo Freire (1738/1798), entre nós, é devido a Tiago Adão Lara: Melo Freire e os primórdios do tradicionalismo luso-brasileiro, que tem sido reproduzido nas coletâneas recentes de apoio aos Colóquios Antero de Quental. Considerou que a elaboração de Melo Freire seria autônoma, com a singularidade de que emprega argumentos de grande peso, a exemplo da tese de que, em Portugal, não fazia sentido a pergunta pela origem do poder do monarca, desde que o nascedouro da nação está associado à monarquia (A.P.).

Transcrevo a síntese magistral que José Hermano Saraiva nos proporcionou ---na História Concisa de Portugal--dos estragos provocados pelas invasões francesas de que, na verdade, estou certo, não nos fazemos uma idéia muito
clara: “A guerra, violenta como nenhuma anteriormente o tinha sido, durou sete anos e teve efeitos devastadores. Os campos ficaram ermos de homens válidos, arrebanhados à força para as fileiras pelas autoridades inglesas. As regiões litorais, onde estavam as cidades mais ricas e que, de um modo geral tinham sido poupadas nas guerras anteriores, que se limitavam aos distritos de fronteira, foram as que mais sofreram. Todos os valores foram confiscados para satisfazer uma contribuição de guerra imposta por Napoleão; ao confisco juntou-se o vandalismo e o saque: igrejas, conventos, palácios, foram despojados de tudo o que tinham de valioso. Muitos tesouros artísticos desapareceram por essa altura. O número de mortes nos combates e nas chacinas de represália foi calculado em superior a cem mil. A fome deve ter feito ainda mais vítimas porque a população desceu em números absolutos.” (A.P.)

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