Javier Barraycoa: "A lógica do independentismo catalão não está clara"

O professor Javier Barraycoa, vice-reitor da Universidade Abat Oliba, de Barcelona, é um crítico do movimento nacionalista catalão. Para ele, a atual onda pró-independência se deve apenas a uma disputa política entre a esquerda e a direita dentro da Catalunha


JULIANO MACHADO




Javier Barraycoa, vice-reitor da Universidade Abat Oliba, de Barcelona. Ele é um crítico dos argumentos do nacionalismo catalão (Foto: Divulgação)

Javier Barraycoa é catalão, nascido em Barcelona e vice-reitor da também barcelonesa Universidade Abat Oliba. Para os nacionalistas catalães, porém, ele é tão odiado quanto um madrilenho orgulhoso em empunhar a bandeira da Espanha. Explica-se: Barraycoa é um crítico contundente da ideia de que há um movimento nacional autêntico na Catalunha. Ele é autor de "Historias ocultadas del nacionalismo catalán" (sem edição no Brasil), em que põe em xeque 222 "mitos" sobre o assunto - entre eles, o de que os catalães sempre lutaram por sua independência do reino espanhol e que a população seria mais próspera em uma Catalunha soberana. Nesta entrevista a ÉPOCA, Barraycoa afirma que a campanha pró-independência de agora tem como pano de fundo uma disputa entre o partido governista (o centro-direitista Convergència i Unió - CiU) e as legendas de esquerda.


ÉPOCA - A partir de uma perspectiva histórica, quando começou a surgir o movimento independentista catalão? Desde setembro de 1714, quando a Catalunha foi definitivamente incorporada pelo Reino da Espanha após a invasão ordenada pelo rei Felipe V?
Javier Barraycoa -
Em 1714, nenhum catalão tinha consciência de ser independentista. Todos os documentos daquela época nos demonstram que foi uma Guerra de Sucessão, na qual o povo catalão estava lutando por um rei da Espanha. Apesar da derrota de 11 de setembro de 1714, em poucos anos os catalães aceitaram a derrota. De fato, o século XVIII foi um dos mais pacíficos e prósperos da Catalunha. Sempre que chegava um rei Bourbon (dinastia que reina na Espanha até hoje, apesar de algumas interrupções ao longo da história) em Barcelona, era recebido com entusiasmo. O catalanismo é muito tardio. Ele se inicia em meados do século XIX, sob influências românticas e com vocação meramente literária. Somente ao final do século XIX, com a perda de Cuba e das Filipinas (ex-colônias espanholas), aparecerá o nacionalismo. E mesmo assim não terá caráter independentista, uma vez que o peso político desse catalanismo estava na burguesia conservadora da Catalunha. Somente com a brusca aparição da 2ª República, em 1931, é quando o independentismo emergirá politicamente, como uma forma de catalanismo, mas desta vez defendido pela Esquerda Republicana da Catalunha (ERC). Portanto, podemos dizer que o independentismo catalão é um fenômeno relativamente recente.

>> A disputa entre Madri e Barcelona sobre o independentismo catalão


ÉPOCA - Quais foram os momentos em que o independentismo catalão foi mais intenso? Podemos defini-los numa linha do tempo?
Barraycoa -
Sim, há uma linha temporal, mas, como disse, acompanhada de uma mudança ideológica muito substancial. No início do século XX, surge a Liga Regionalista, um partido conservador financiado pela burguesia catalã. Seu líder – Prat de la Riba – escreve “A Nacionalidade Catalã”, que pode ser considerada a primeira bíblia do catalanismo. O partido será hegemônico durante 20 anos até chegar a ditadura de Primo de Rivera em 1923. O catalanismo conservador apoiou o golpe de Estado para salvaguardar os interesses da burguesia, mas a própria ditadura suprimiu a autonomia política conquistada pela Catalunha. Quando caiu, a ditadura arrastou junto a monarquia e chegou a República. O catalanismo acabou então nas mãos da esquerda. A ERC, liderada por Francesc Macià, aproveitou para proclamar o “Estado Catalão”, ainda que pouco depois, as novas autoridades republicanas o fizeram se curvar ao estado espanhol. Igualmente, por causa de uma crise revolucionária em 1934, o sucessor de Macià, Lluìs Companys, voltou a proclamar o Estado Catalão, mas a aventura política durou apenas algumas horas. Dois anos depois iniciaria a Guerra Civil na Espanha. O catalanismo político ficou praticamente deixado de lado por causa das circunstâncias e os governos autônomos foram fantoches, primeiramente do movimento anarquista e depois do comunismo. Somente nos últimos anos da ditadura de Francisco Franco (1939-1975) que o catalanismo voltou a recuperar um papel de protagonista. Depois da morte de Franco, a Catalunha recebeu do exílio o último presidente da Generalitat Republicana (governo local da Catalunha), Josep Tarradellas. Esta foi uma eclosão do catalanismo. Com a restauração da democracia e a autonomia catalã, novamente o catalanismo conservador se tornou hegemônico. Contudo, a história se repete e, novamente, parece que o discurso catalanista foi se radicalizando ideolologicamente e sendo monopolizado por setores cada vez mais esquedistas.


ÉPOCA - Quais foram as causas mais frecuentes desses momentos em que o independentismo ressurge com mais força?
Barraycoa -
A lógica do independentismo não está clara, se buscamos entendê-la como uma lógica racional e política. Muitas vezes, a emergência do independentismo ocorreu sem nenhuma causa aparente. Por exemplo, quanto mais autonomia se concedeu a Catalunha, mais cresceu o independentismo. Todos os analistas do governo central pensavam que ocorreria o inverso. Contudo, podemos descobrir que existem certas lógicas profundas que poderiam explicar estas emergências. Por exemplo, as reivindicações independentistas surgem como estratégias do partido conservador catalanista dominante (Convergència i Unió, CiU), quando quer “negociar” com o governo central. Eles sempre apresentam a juventude do CiU como radicais e independentistas para “assustar” os governos centrais. No entanto, como na última grande manifestação independentista do último dia 11 de setembro, a CiU perdeu o controle de sua estratégia. Agora se vê obrigada a ser mais independentista que os outros partidos, para evitar que roubem seu eleitorado.


ÉPOCA - A razão para o surto independentista de agora é exclusivamente a crise econômica ou existem outros elementos?
Barraycoa -
A crise econômica gera independentistas, mas não nacionalistas. Explico: muita gente que recentemente imigrou para a Catalunha e nem sequer sabia falar catalão apoia a independência. Isso se deve à crença de que, se a Catalunha se tornar independente, todos seremos mais ricos. Esse argumento é mais que absurdo, pois as consequências econômicas seriam desastrosas para a Catalunha. Ainda assim, o peso mais forte do independentismo está na nova generação de nacionalistas que surgiram do sistema educacional. A autonomia catalã tem competência sobre a educação há 30 anos e submete a processos de imersão linguística a toda a população estudantil, inclusive os 60% que não falam catalão. Isso, unido a uma explicação absolutamente distorcida da história, levou muitos jovens a se sentirem independentistas. Uma última explicação “oculta”, mas evidente, é que o independentismo se converteu em uma “religião civil” que substituiu a religião tradicional. As duas regiões da Espanha mais independentistas – Catalunha e Vascongadas – são as que têm uma prática religiosa substancialmente mais baixa. O nacionalismo ajuda a recriar um sentido existencial diante do vazio da vida.


ÉPOCA - Qual a possibilidade de esse movimento atual ter êxito, ou seja, conseguir a efetiva independência da Catalunha?
Barraycoa -
Paradoxalmente, as possibilidades de triunfo do independentismo não dependem dos independentistas ou de sua força. Em todo o caso, dependerá da força ou debilidade que o Estado espanhol mostrará ante o desafio político e, em certa medida, as diretrizes que sinalize a Europa. Como o governo espanhol aplica simplesmente a lei e a Europa o respalda, o independentismo será uma mera quimera que somente provocará frustração em seus seguidores. Ainda assim, sou consciente de que o cenário poderia ser perfeitamente o inverso: uma conivência da União Europeia e uma debilidade do governo.


ÉPOCA - Por que o senhor costuma dizer que a Catalunha é profundamente espanhola? Não existe realmente um independentismo autêntico?
Barraycoa -
Antes de existir a palavra Catalunha, essa terra era conhecida como “Marco Hispânico” e seus habitantes eram chamados de hispânicos. O bispado principal da Catalunha, em Tarragona, se denominava “Primado das Espanhas”. Todas as crônicas medievais, ao se referirem à Catalunha, a chamavam de “Hispania”. Os primeiros monges que foram a América eram catalães. Enfim, não pararia de te dar dados. A burguesia catalã, necessitada do apoio dos governos espanhóis que protegiam seus interesses na América frente à Inglaterra em suas antigas colônias, articulou um partido político, a Liga que mencionei. Esse partido necessitava de uma ideologia e a encontraram no nacionalismo de Prat de La Riba. Mas muitos desses burgueses nunca acreditaram nela e tinham consciência de que se tratava simplesmente de uma estratégia política. Depois de duas gerações, os catalanistas já acreditavam nisso cegamente. Curiosamente, hoje em dia é mais fácil comprovar como muitos catalães desconhecem a história da Catalunha e do catalanismo.