Ganhou e não levou

Os inventores brasileiros e suas
máquinas maravilhosas não
reconhecidas mundialmente
Sérgio Ruiz Luz



A medida que o final do século se aproxima, surgem as inevitáveis listas dos gênios responsáveis pelos maiores avanços tecnológicos da humanidade. Embora seja sempre revestido de certo rigor, esse tipo de eleição raramente deixa de refletir as preferências de quem o organiza. "Escolher é ser parcial", diz Harold Bloom, estudioso americano autor de OCânone Ocidental, um tratado erudito sobre os livros que, para ele, são os pilares da cultura atual. E é mesmo. Na lista dos maiores cientistas do milênio da revista francesa Recherche, quem predomina? Óbvio. Os cientistas franceses. Em sua edição especial do milênio, a revista Time dá mais destaque à quase desconhecida ambientalista americana Rachel Carson do que ao legendário defensor dos mares, o oceanógrafo francês Jacques Cousteau. É do jogo. VEJA oferece a seguir uma relação de inventores e pioneiros que só não entraram nas listas estrangeiras por uma falha de relações públicas.

Aviação
1- Santos Dumont: 23 de outubro de 1906 A bordo do 14 Bis, uma nave com fuselagem de bambu, pano e um motor de 50 cavalos, Santos Dumont se eleva acima de 2 metros e percorre 60 metros num gramado de Paris
2- Wilbur e Orville Wright: 17 de dezembro de 1903 Wilbur é o piloto do primeiro vôo de doze segundos do Flyer, nave motorizada feita de madeira e pano, em Kitty Hawk, Carolina do Norte
Quem venceu: enquanto Santos Dumont se exibia para a platéia parisiense, os irmãos Wright tratavam de viabilizar comercialmente sua idéia. Conseguiram a patente e fizeram um contrato com o Exército americano

Uma das histórias mais fabulosas é a do padre gaúcho Roberto Landell de Moura. No final do século passado, ele aproveitou um período de estudos em Roma para aprofundar-se nas pesquisas sobre a possibilidade de enviar sons e sinais pelo ar, a grandes distâncias e sem a ajuda de fios. Landell voltou ao Brasil em 1886, foi morar em Campinas, interior de São Paulo, e continuou pesquisando. Logo desenvolveu um aparelho formado por uma válvula e três eletrodos. O grande teste da engenhoca ocorreu numa transmissão efetuada na capital do Estado. O sinal do invento de Landell, transmitido da Avenida Paulista, foi captado no bairro de Santana, a 8 quilômetros de distância. Um repórter do Jornal do Comércio e um representante do governo britânico testemunharam o feito, realizado em 1894. Só sete anos depois o italiano Guglielmo Marconi transmitiria o "S" do código morse de uma estação telegráfica da Inglaterra para outra, nos Estados Unidos. Sua experiência é tida como o marco inicial da radiotransmissão. "É muito comum encontrar na História vários pesquisadores desenvolvendo em locais diferentes a mesma tecnologia", afirma o jornalista Reynaldo Tavares, autor do livro Histórias que o Rádio Não Contou. "Marconi e o padre Landell são exemplos disso, e o italiano levou o crédito porque contou com todo o apoio do governo italiano para suas experiências."

Pacto com o demônio Enquanto seu rival italiano ficava famoso, Landell de Moura era perseguido no interior do Brasil. O padre conseguiu registrar no país e nos Estados Unidos patentes para "um aparelho apropriado à transmissão da palavra a distância, com ou sem fios, através do espaço, da terra e da água". Mas não escapou da desconfiança da diocese paulista e dos moradores de Campinas. Foi acusado de bruxaria, pois era dado a falar com "vozes do além", e seu laboratório foi destruído. Em 1905, perdeu a grande chance de mudar sua sorte e a da tecnologia de ponta do país ao ser recebido por um assessor do presidente Rodrigues Alves. O inventor queria tomar emprestados dois navios da Marinha para uma demonstração pública de seu aparelho. A conversa corria bem até que Landell, entusiasmado, afirmou que sua criação seria usada no futuro até para transmissões interplanetárias. Antes de mandá-lo de volta para casa, o assessor escreveu o seguinte despacho ao presidente: "Excelência, o tal padre é maluco". Um dia depois, Landell recebia em casa um telegrama de Rodrigues Alves recusando educadamente o empréstimo dos navios.
Debates a respeito da paternidade de novas idéias ocorrem não apenas por questões de nacionalismo. Muitas vezes acontecem coincidências mesmo e pessoas diferentes desenvolvem projetos semelhantes ao mesmo tempo (veja quadro). Foi o que ocorreu com a fotografia. No começo do século passado vários inventores estudaram métodos para fixar imagens em papel. Cada pesquisador deu uma contribuição importante ao processo, mas foi o artista francês Louis-Jacques Mandé Daguerre quem levou a fama. Em 1837, depois de batizar seu invento de "daguerreótipo", ele convenceu o governo de seu país a comprar a patente do aparelho.
Máquina de escrever
3- Francisco João de Azevedo: 1861 O padre paraibano construiu um protótipo que era acionado por um sistema de pedais, como as antigas máquinas de costura
4- Christopher Latham Sholes: 1867 Sholes, tipógrafo americano, construiu um modelo de madeira e metal, com porta-tipos independentes acionados por um sistema de teclas e arames.
Quem venceu: a máquina de Azevedo funcionava, mas foi Sholes quem produziu o modelo que serviu de base à produção industrial do equipamento

Aventura na selva Na mesma época, um compatriota de Daguerre radicado no Brasil realizou experiências muito parecidas às de seus colegas europeus. Nascido em Nice, o francês Hercule Florence mudou-se para o Brasil aos 20 anos. Ótimo desenhista, foi convidado a participar de uma expedição científica ao interior do país organizada pelo cônsul da Rússia, Georg Heinrich von Langsdorff. A aventura ficou célebre por seus resultados desastrosos. Depois de partir de Minas Gerais, em 1825, a comitiva percorreu 15.000 quilômetros em quatro anos. Entre outros contratempos, Langsdorff enlouqueceu no meio do caminho e um dos integrantes morreu afogado. As peripécias da viagem ficaram conhecidas graças às anotações de Florence em seu diário. Anos depois, já morando em Campinas, no interior de São Paulo, o francês começou a pesquisar meios de reproduzir seus estudos sobre zoologia. Em 1833, ele descreve no diário uma experiência com o registro da imagem de uma janela feito por uma caixa preta, um sistema de espelhos e um papel embebido numa solução de nitrato de prata. Quando soube das experiências na Europa do patrício Daguerre, desabafou no diário: "Imprimi por meio de sol sete anos antes de se falar em fotografia. Já tinha lhe dado esse nome, entretanto couberam a Daguerre todas as honras".
Os grandes inventores distinguiram-se de seus rivais não só por causa de idéias geniais. Além da criatividade, possuíam um formidável talento para o marketing pessoal e eram espertos homens de negócios. O tipógrafo americano Christopher Latham Sholes, tido como o criador da máquina de datilografia, é um mestre do gênero. A idéia de escrever por um meio mecânico surgiu no século XVIII, quando a rainha Anne, da Inglaterra, concede a primeira patente de uma máquina de escrever. O autor do pedido, Henry Mill, porém, não consegue tirar sua idéia do papel. Vários outros inventores desenvolveram protótipos, mas é o americano Sholes que, em 1867, consegue produzir o primeiro modelo que funciona. Sholes vende seu projeto para a Remington, fabricante de armas que investe pesado na produção industrial do novo artefato. A empresa contratou o escritor Mark Twain como garoto-propaganda, distribuiu cartazes com a foto da filha de Sholes trabalhando na máquina e organizou os primeiros cursos de datilografia.
Rádio
5- Roberto Landell de Moura: 1894 O padre gaúcho fez uma transmissão de voz da Avenida Paulista para Santana, bairro em São Paulo a 8 quilômetros de distância. Depois da experiência, registrou patente de sua invenção no Brasil e nos Estados Unidos. Na década de 80, alunos de engenharia remontaram o aparelho. E ele funcionou perfeitamente
Guglielmo Marconi: 1901 O físico italiano envia pelo ar o sinal "S", do código morse, da Inglaterra para os Estados Unidos, cobrindo uma distância de 3 500 quilômetros pelo Oceano Atlântico. A experiência é considerada até hoje o marco inicial da radiotransmissão mundial
Quem venceu: Landell não foi levado a sério por seus compatriotas na época. Enquanto isso, Marconi contou com a ajuda do governo italiano para divulgar seu intento
Invento roubado Seis anos antes da invenção de Sholes, porém, um padre paraibano, Francisco João de Azevedo, já circulava por exposições no Brasil com um modelo de máquina de escrever que funcionava perfeitamente. Professor de cursos técnicos de geometria, desenho e mecânica, o padre concebeu seu projeto nas oficinas de uma fábrica de armamentos do Exército. A geringonça era um móvel de jacarandá equipado com teclado de dezesseis tipos e pedal. Tinha a aparência de um piano. Cada tecla da máquina de Francisco acionava uma haste comprida com uma letra na ponta. Combinando-se duas ou mais teclas era possível reproduzir todo o alfabeto, além dos outros sinais ortográficos. O pedal servia para o datilógrafo mudar de linha no papel. A máquina era um sucesso por onde passava. Chegou a ser mostrada numa exposição do Rio de Janeiro, na presença do imperador Pedro II. Nesse evento, o padre recebeu uma medalha de ouro dos juízes em reconhecimento a seu projeto revolucionário. Depois a idéia foi esquecida. Ataliba Nogueira, biógrafo do padre Azevedo, sustenta que seus desenhos foram roubados por um estrangeiro, desestimulando-o a continuar no desenvolvimento da invenção. Ainda assim, os primeiros cursos de datilografia no Brasil exibiam na parede retratos do padre para homenagear o patrono da máquina de escrever. As escolas financiadas pela Remington faziam o mesmo, só que com o retrato de Sholes.
Os maiores aviadores brasileiros também tiveram problemas para ser reconhecidos. É o caso de João Ribeiro de Barros, que entrou na corrida para se tornar o pioneiro das travessias transatlânticas. Barros realizou sua viagem a bordo do hidroavião Jahú no dia 28 de abril de 1927. Antes de decolar da Ilha de Cabo Verde, na África, enfrentou problemas como sabotagens e intrigas com a tripulação. No auge da confusão, chegou a receber um telegrama do presidente Washington Luís desaconselhando a viagem. Barros ignorou a ordem e foi recebido com festa no Brasil, depois de seu pouso em Fernando de Noronha. As glórias da travessia pioneira, porém, foram atribuídas ao americano Charles Lindbergh, que completou a rota ParisNova York 23 dias depois da façanha do piloto brasileiro. Em sua aventura, porém, Lindbergh cumpriu quase o dobro da distância coberta pelo Jahú. Barros escolheu a rota mais fácil, que já havia sido percorrida por outros pilotos europeus.
Fotografia
6- Hercule Florence: 1833 Florence, desenhista francês que morava em Campinas, reproduz a imagem de uma janela utilizando uma caixa equipada com uma lente e um papel embebido em nitrato de prata
7- Louis-Jacques Mandé Daguerre: 1837 O francês Daguerre aperfeiçoa o sistema de seu sócio, Joseph-Nicéphore Niepce, pioneiro na reprodução de imagem por processos químicos, e vende a patente do "daguerreótipo" ao governo francês
Quem venceu: Florence estava entre os pioneiros que pesquisaram os princípios da fotografia, mas Daguerre foi o primeiro a comercializar o invento

A memória do aviador brasileiro só é cultuada em sua cidade natal, Jaú, no interior de São Paulo. Existe um busto de Barros decorando a praça principal do lugar e o aniversário de 72 anos do feito, ocorrido na semana passada, mereceu animadas comemorações no município, com lançamento de um CD com o hino em homenagem ao piloto. O avião de Barros e muitos de seus objetos pessoais, porém, encontram-se abandonados no Museu de Aeronáutica, em São Paulo. O Jahú foi atacado por cupins e já serviu de abrigo para famílias de mendigos. Por isso, a família do aviador luta na Justiça desde 1992 para recuperar a posse do espólio. "Nossa família reconhece que outros aviadores percorreram antes a rota entre Cabo Verde e Fernando de Noronha, mas está claro que o Jahú foi o primeiro avião pilotado por alguém das Américas a fazer a travessia do Atlântico", afirma José Ribeiro de Barros Filho, sobrinho do aviador. "É uma injustiça histórica atribuírem o feito a Lindbergh."
Por ironia, o único inventor brasileiro com talento para divulgar ao mundo suas façanhas também não conseguiu ser reconhecido. No dia de seu famoso vôo por Paris a bordo do 14 Bis, Santos Dumont contava com uma platéia de centenas de pessoas, entre elas vários membros de uma respeitada instituição, o Aeroclube da França. A façanha repercutiu nos jornais europeus e transformou Dumont num herói brasileiro. Fora do país, porém, seu feito foi ofuscado pelo vôo dos irmãos Wright. Eles sobrevoaram por doze segundos um campo da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, em 1903 portanto, três anos antes do 14 Bis. Mas apenas cinco pessoas testemunharam o feito e até hoje paira sobre ele a suspeita de que os americanos usaram uma catapulta para facilitar a decolagem de seu avião, Flyer. Os Wright não deram importância às críticas e foram incansáveis no desenvolvimento comercial de seu projeto. Em 1906 já detinham a patente do invento. Dois anos depois assinaram um contrato de fornecimento de aeroplanos para o Exército americano. Quando fizeram sua primeira apresentação pública, em 1908, em Paris, vários outros modelos mais pesados do que o ar já haviam sobrevoado a cidade. Enquanto isso, Santos Dumont realizou mais alguns testes bem-sucedidos com o 14 Bis e passou a desenvolver um pequeno avião batizado de Demoiselle. No verbete dedicado ao brasileiro, a Enciclopédia Britânica diz que o Demoiselle foi o ancestral dos modernos ultraleves. Enfim, algum reconhecimento.
Mera coincidência

No Brasil há quem defenda que o "pai da aviação" não foi Santos Dumont, muito menos os americanos irmãos Wright. O verdadeiro criador teria sido o paraense Júlio César Ribeiro de Souza. Figura pouco citada até mesmo em livros brasileiros, Souza construiu em 1881 um dos primeiros balões dirigíveis do mundo, o Victória. Segundo os jornais e documentos da época, o modelo com 10 metros de comprimento e duas asas foi o primeiro a andar em linha reta. Na experiência, ocorrida em Paris, o aparelho voou a uma velocidade de 8 metros por segundo. Entusiasmado com o sucesso do Victória, o piloto registrou a patente em onze países. Alguns anos depois, sem dinheiro e revoltado com o que considerava ter sido um roubo da invenção, já que na Europa todos passaram a usar um sistema semelhante ao seu, Souza conseguiu dinheiro emprestado do governo do Pará para fazer alguns protestos na França. Seus esforços não deram em nada e ele morreu aos 43 anos em seu Estado, sem dinheiro e sem glória.
Uma das maiores coincidências científicas cruzou a história dos ingleses Charles Darwin e Alfred Russell Wallace em meados do século passado. Percorrendo caminhos diferentes, os dois desenvolveram ao mesmo tempo trabalhos semelhantes sobre a teoria da evolução das espécies. Em seus estudos, Wallace andou pelo Pacífico Sul e mais tarde pela Amazônia, onde recolhia espécimes raros para vender na Europa. As pesquisas levaram-no a escrever um manuscrito em que abordava a seleção natural como o motor da evolução. Em vez de mandar a obra para ser publicada, enviou-a para apreciação de Darwin, com quem já mantinha correspondência. Depois de lê-la Darwin decidiu pela publicação dos próprios estudos, que vinha protelando havia vinte anos. Sem mágoa, Russell reconheceu que sua maior contribuição à ciência foi ter forçado Darwin a divulgar sua teoria. O mais comum nesses casos, no entanto, é a conflagração de conflitos. Recentemente a disputa entre o médico americano Robert Gallo e seu colega francês Luc Montagnier em torno da primazia na descoberta do vírus da Aids foi parar nos tribunais, com prejuízo para a reputação de ambos.

Veja 05/05/99