A Contemporânea Desvirtuação do Trabalho

A legislação atual de fundo iluminista cria ficções incapazes
de se sustentar na realidade.





Frederico de Castro


A análise que se fará poderá ser a princípio, um pouco enfadonha para boa parte do público leigo que acompanha os estudos do SPES; entretanto, em função de sua importância para o bem comum, não podemos nos conceder passar nossos estudos sem abordar o tema. De maneira, que só nos resta mesmo encorajar ao estudo e contar com a paciência dos amigos.
Pode ser que alguém um pouco apressadamente sustente que o tema seja pouco relevante para a doutrina católica e para os temas sociopolíticos de uma forma geral, mas será seguramente um engano. As relações sociopolíticas que envolvem o trabalho tem sua fonte diretamente na Lei Divina e no Decálogo, precisamente nos 7º. e 10º. Mandamentos: não furtar e não cobiçar as coisas alheias.
Pois bem, o atual direito trabalhista é uma sistematização jurídica que foi criada e difundida como uma conseqüência do industrialismo e das disputas político-ideológicas que marcaram o início da era moderna. (capitalismo x socialismo)
Mas é preciso que se diga que tais disputas não assumem um verdadeiro e essencial antagonismo, muito pelo contrário, já que têm sua raiz comum no iluminismo renascentista, estando, via de conseqüência, formuladas sob a forma do pensamento sintético, ou seja: tese + antítese = síntese. (capitalismo + socialismo = social-democracia/globalização)
A quimera liberal-comunista e
seu falso antagonismo.
Nesses termos, essas não irão guardar maiores contrastes no que diz respeito à ética dos costumes ou quaisquer circunstâncias atreladas a preceitos morais, e ficarão simplesmente restritas a aspectos formais (modus operandi) atrelados materialmente ao próprio pensamento iluminista, sobretudo no que tocar à instrumentalização do direito de propriedade na economia.
Entender esse aspecto do contexto político-jurídico do período mencionado é, portanto, um requisito importantíssimo para a compreensão do que se convencionou chamar “justrabalhismo”, pois é nessa conjuntura político-jurídica que a moderna relação jurídica de emprego, na qual se fundamenta todo esse sistema, irá ser pela primeira vez totalmente difundida e amadurecida ao redor do globo. Será, pois, necessário verificar a natureza de tal relação jurídica, bem como a sua integração com o atual sistema jurídico-político-econômico.
Por ser assim, conceitua-se academicamente que o direito do trabalho é um conjunto de princípios e normas aplicáveis à relação jurídica de emprego, cuja natureza é entendida como contratual como revela a sua origem romana no chamado locatio conductio operarum (locação de mão-de-obra). Assim de tal modo que a relação jurídica é formalizada por um instrumento contratual costumeiramente chamado de contrato de trabalho.
Cuida-se, portanto, de toda uma sistematização jurídica integralmente dedicada a uma única relação de direito privado sendo e, seguramente, o primeiro exemplo de dirigismo contratual que surgiu na história.


Mas, o que realmente caracteriza, e como funciona, essa relação jurídica de emprego?


Para se responder a essa pergunta será preciso fazer uma análise dos sujeitos contratuais e também de seu objeto. Logo, em um primeiro momento, atente-se ao fato de que no Brasil os conceitos de empregador e empregado são estritamente legais e, não obstante, em nada se descuidam de ser iluministas em essência, visto que são notadamente marcados pela modificação do conceito clássico de serviço, sobretudo pela inserção conceitual do que a doutrina costuma chamar de caráter forfetário da atividade do empregado. Explica-se: para que o vínculo jurídico empregatício exista é preciso que o tomador do serviço, ou seja, o empregador, assuma integralmente o risco da atividade econômica, pois do contrário o contrato não poderá ser caracterizado como contrato de trabalho, mas sim qualquer outra espécie.
E por ser exatamente assim, as forças político-ideológicas da atualidade executam suas ações em função dessa essencial característica; ou seja, o capitalista o faz para justificar a extensão dos seus lucros, enquanto o socialista para justificar a abolição, ou pelo menos a mitigação, do direito de propriedade. Logo, seja como for, há de se reparar que o mesmíssimo atributo jurídico servirá como base de defesa tanto de uma posição quanto da outra, o que revela não apenas o erro de ambos os postulados, mas igualmente a origem comum do problema.
Portanto, a característica forfetária, longe de ser fática como se deseja fazer crer a academia contemporânea, é, com efeito, uma simples fictio juris que deriva da adulteração conceitual e doutrinária de idéias inerentes à própria relação jurídica em comento, tais como: trabalho, serviço e economia.
Dito isso, vejamos tais conceitos, a começar pela noção de economia, relembrando que o contrato de trabalho, como todo e qualquer espécie contratual, se presta, sobretudo, a instrumentalizar o direito de propriedade e, via de conseqüência, se presta a servir de força motriz da economia como principal instrumento de circulação das riquezas.
Quid facient legis, ubi sola
pecunia regnat?
Que fazem as leis onde
somente o dinheiro reina?
Pois bem, Santo Tomás de Aquino, na obra Comentário à Política de Aristóteles, ensina que há uma diferença entre a arte de adquirir dinheiro (ars pecuniativa) e a administração econômica, economia (oeconomiæ).
Ensina o Doutor Angélico que a arte de adquirir dinheiro (ars pecuniativa) está a serviço da administração econômica (oeconomiae), da mesma forma como a arte de construir navios está ordenada à arte de comandá-los, ou seja, à arte de navegar. Uma é subalternada à outra na exata medida em que a causa eficiente é subordinada à causa final.


Diz Santo Tomás: “A arte produtiva serve sempre à arte que se dirige ao uso [do que se produziu]”.


Logo, só se adquire dinheiro para que se possa dirigir o seu uso a estes ou àqueles bens. O que nos traz uma nova indagação: o uso do que se adquiriu poderá ser dito bom ou mau? A resposta à pergunta é positiva, pois há um bom e um mau uso do que se adquire.
Com efeito, o objeto próprio da economia é administrar o que se adquiriu em vista do bem comum — e aqui, propriamente, ele se confunde, neste âmbito, com o objeto da Política na proporção em que tais bens adquiridos constituírem o patrimônio público.
Portanto, da mesma forma que não se constrói um navio para o naufrágio, se esse patrimônio público não for, pelo menos no que houver de fundamental ao bem comum, compartilhado pelo conjunto dos cidadãos, haverá certamente uma dissensão política pelo simples fato de que a justiça não grassa onde o que é fundamental permanece na posse de poucos.
Nesse sentido, percebe-se que a idéia de se fazer da “economia” o fundamento de tudo quanto realmente importa prevaleceu, e foi colocada em prática na síntese globalizada do tempo em que vivemos. Hoje, portanto, vive-se somente a arte de multiplicar a grana (ars pecuniativa) e a economia, virou uma coadjuvante praticamente inexpressiva.
Pois bem, essa ars pecuniativa tem como pressuposto o trabalho/obra humano, seja pela forma direta ou indireta. É preciso trabalhar para haver fruição de bens, apesar do fato de até ser possível encontrar-se graciosamente uma infinidade de insumos na natureza, pois estes por si próprios não satisfazem completamente as diversas necessidades e desejos do homem.


Mas ainda: realmente o que é esse trabalho?


Pode-se dizer que o homem em sua vida possui três aspectos da sua existência: o SER, o FAZER e o TER. O trabalho humano, como é intuitivo, é da ordem do fazer. E com isso não se está apenas mencionando o sentido mais usual da palavra trabalho, qual seja, a de ser ofício ou profissão, mas sim a ação específica do homem em ser capaz de transformar e descobrir. Aliás, com esse vocábulo se quer dizer ainda mais; se diz da capacidade criativa para transformar e realizar - coisas em bens, pensamentos em idéias. Mais ainda; diz-se da criatividade que se configura em arte e ciência, que por sua vez possibilitam a expressão criativa por meio da realização de obras que - conforme a graduação de sua utilidade – serão mais ou menos apetecíveis, ou por necessidade, ou por desejo, donde finalmente passarão à ordem do ter e se converterão em objeto da ars pecuniativa e da oeconomiae.
O trabalho é, pois, uma ação - uma produção - e como toda e qualquer ação consciente, será dirigida a um determinado fim; todo trabalho possui um fim. E que fim é esse?
O fim do trabalho é sanar a imoderação dos apetites expressivos do homem (que são os deleites com desejo de glória, desejo de conhecer e desejo de se exteriorizar, por gestos e/ou aparência) ajudando-o a desenvolver as virtudes e potencias que a esses mais diretamente se contrapõem, tais como a humildade, a modéstia, a estudiosidade e a boa educação. Ao contrário do animal, que permanece sempre o mesmo em essência, o homem tem potência para ficar melhor, mas principalmente quando trabalha.
É certo, portanto, que sem o trabalho o homem dificilmente se desenvolve e isto está demonstrado muito claramente na Sagrada Escritura:





“A seguir disse ao homem: Porque ouviste as palavras da tua mulher e comeste o fruto da árvore a respeito da qual Eu te havia ordenado: Nunca deveis comer o fruto desta árvore maldita seja a terra por tua causa. E dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, em todos os dias da tua vida. Produzir-te-á espinhos e abrolhos, e comerás a erva dos campos. Comerás o pão com o suor do seu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado: porque tu és pó e em pó te hás-de tornar.”
Gn. 3, 17-19


Fica evidente, então, que o trabalho é uma sentença imposta a todos os homens. Contudo, como Deus fez cada homem livre, muitos são os que impõem aos outros um trabalho injusto, em favor de si mesmos, ou, então, retiram de uma forma ou de outra os frutos do trabalho alheio; ou ainda, por fim, acabam atribuindo ao trabalho uma característica de ato como fim em si mesmo e, via de conseqüência, destituído de qualquer responsabilidade.
O trabalho, então, é uma circunstância imperativa à qual Deus sentenciou o homem decaído em razão das contingências que o pecado implicou. Nesse sentido, o trabalho para o homem é ao mesmo tempo uma pena e uma graça, porque Deus não quer senão o bem e a salvação do homem. É justiça, misericórdia e graça a um só tempo. Isso posto, os que evitam a justiça e buscam somente a graça oriunda do trabalho, seja por si próprios, ou explorando o trabalho alheio, cedo ou tarde, inevitavelmente, deverão suportar a justiça da sentença divina. Explicita-se com uma paráfrase de um anglicismo muito apropriado como definição: “no pain no gain”.
Assim sendo, o mundo do trabalho é o mundo das descobertas, das transformações e realizações do homem na medida de suas próprias limitações. Aliás, é bom que se diga que apenas Deus cria propriamente, ou seja, apenas Ele faz surgir do nada. O homem apenas re-cria/transforma ou descobre a obra de Deus, e mesmo assim de uma maneira muitíssimo limitada.
Portanto, o trabalho tem essa natureza sentencial que é a um só tempo genérica – imposta a toda humanidade – e personalíssima – especialmente carreada e mensurada a cada alma vivente -; bem como, a um só tempo penitencial – representando um castigo ou mortificação – e graciosa – dignificando e enobrecendo o homem. Com efeito, o bom trabalhador/obreiro (empregado ou patrão; senhor ou servo) sabe que de Deus tudo dependemos e a Deus tudo devemos.
Ocorre que o mundo não pensa dessa forma. Ele está sempre a negar essa natureza sentencial; ora recusando a seu caráter genérico, ora recusando seu caráter personalíssimo, ora recusando seu caráter penitencial, ora recusando seu caráter gracioso. Diz, pois, a academia contemporânea, bem como as correspondentes legislações, que o empregado vende, aluga ou empenha a sua força produtiva - o seu trabalho - para o empregador e que por esta razão a sua atividade deve ser considerada forfetária, ao passo que a do empregador é arriscada. Mas o que significa realmente dizer uma coisa dessas?
Em pouquíssimas palavras significa recusar que o homem esteja sentenciado ao trabalho posto que apenas pode ser vendido, alugado ou empenhado o que é próprio. Trata-se, portanto, de uma grande revolta contra Deus e mais precisamente um dos frutos da audaciosa revolta do iluminismo renascentista contra Deus.
As conseqüências dessa forma de pensar, no que toca especificamente ao trabalho humano, é a um só tempo a formação de dissensões na oeconomiae e hipertrofia da ars pecuniativa; ou dito de outro modo, insuflamento da cobiça e do desespero.


Mas haverá ainda quem diga; - isso bem pode ser verdade, mas não há uma saída.


Não, essa assertiva não é verdadeira. No passado já houve outras formas de se estabelecer as relações jurídicas provenientes do trabalho e, além do mais, frisamos: na medida em que a natureza forfetária/arriscada da relação jurídica de emprego ocorre em função de uma fictio juris (ficção jurídica) ela pode ser modificada. Além do mais, se os efeitos jurídicos de uma ficção legal não alcançarem o bem comum então a conclusão lógica a que se pode chegar é a de que a norma em questão está a desafiar o direito natural.
Ora, no mundo sempre houve e haverá trabalho; a rigor, a relação jurídica de emprego é algo bastante moderno. Com efeito, afora as formas corrompidas de trabalho, tais como a escravidão ou diversas circunstâncias de maus tratos a ela assemelhadas, na antiguidade ao trabalho simplesmente se lhe dava o nome competente: trabalho – ou então, obra ou serviço. É justamente daí que se extraem os designativos trabalhador, obreiro e servo ou servidor.
No pensamento dos iluministas, entretanto, – eminentemente rebelde – se quis difamar e caluniar tudo quanto fosse medieval ou estivesse conectado à doutrina da Santa Igreja e comparou as relações de senhorio e vassalagem (vassalo = servo/servidor) à escravidão, o que é uma afrontosa mentira, além de uma terrível injustiça. Evidentemente, não se está a propugnar qualquer neo-medievalismo, ou coisa que o valha, mas sim o aproveitamento de sua essência principiológica, que, a bem da verdade, sempre esteve fundamentada nos ensinamentos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Portanto, prestar um serviço – no plano fático - não tem nada que ver com a venda ou aluguel ou empenho da força produtiva/criativa do homem. Atentemos para o fato de que fazer essa distinção não é uma inutilidade prática, como podem pensar algumas pessoas, mas é algo bastante relevante. Vejamos os arts. 2º. e 3º. da CLT:


Art. 2º. Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.


Art. 3º. Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.


Chama-se a atenção para o fato de haver um desvirtuamento do conceito de serviço com o mal uso da técnica legislativa utilizada o que acrescentou os elementos “riscos da atividade econômica” e “dependência” deixando o vocábulo “serviço” como conceito jurídico indeterminado (ou aberto como preferem alguns juristas).
Por sua vez, o senso comum contido no vocábulo serviço, segundo o próprio dicionário da língua portuguesa, traz uma incongruência com as conceituações legais, a saber:


Ser.vi.ço sm (servitiu)


1 Ato ou efeito de servir. 2 Estado, emprego ou ocupação de quem é servo, criado ou doméstico. 3 Estado de quem trabalho por salário. 4 Exercício, funções, trabalho do que serve. [outros significados fora de contexto em um verbete enorme, etc...]


Servir (lat servire) vtd


1 Estar a serviço de; prestar serviços a. 2 Prestar serviços; ser servo ou criado. 3 Ajudar, auxiliar, ser útil, servidor, benfazejo [outros significados fora de contexto em um verbete enorme, etc...]


Há no iluminismo uma inversão
da lógica comum que faz
propagar a idéia de que a
economia de consumo assentada
na usura é o fundamento de
tudo quanto realmente importa.
Portanto, há de se reparar a inversão lógica sob a qual ficou submetido o senso comum à doutrina iluminista por meio de uma imposição legal, ou seja, segundo a lógica comum, que é ditada inicialmente pelo próprio significado das palavras, quem se encontra em estado de dependência nas tarefas, no trabalho, é o tomador do serviço (empregador) que necessita de um ou mais auxiliares, de ajudantes para conseguir ou facilitar a execução do seu empreendimento, ao passo que segundo a “lógica” iluminista, que vigora apenas por força de lei, quem se encontra sob dependência é justamente aquele que fornece o auxílio.
Ora, até seria possível identificar-se uma dupla dependência em alguma medida já que uma obra, não raras vezes, somente se conclui pela intervenção de ambas as partes envolvidas – empreendedor e ajudante -, mas, entretanto, na maior parte das vezes o empreendimento (se não for público) muito pouco, ou mesmo nada, interessa ou satisfaz ao ajudante; de tal forma que é um imperativo de justiça que ele seja recompensado pelo auxílio prestado; o que novamente reforça o caráter de dependência que o empreendedor tem em relação aos ajudantes.
Não obstante, apesar do fato de que a dependência seja realmente uma característica mais presente no tomador (e não do ajudante como se estabelece na ficção legal), não significará dizer que ambos deverão manter necessariamente uma simples relação de coordenação ou de autonomia. Dado que o interesse praticamente exclusivo no empreendimento pertence ao tomador é lógico que lhe deverá competir o dever de comando. Portanto ele será hierarquicamente superior, sob o ponto de vista jurídico. O que implica dizer que o servidor serve ao tomador – é servo deste - e, nesse caso, há uma espécie, embora bastante tênue na contemporânea relação de emprego, de pertinência cabível à relação jurídica que envolve o princípio jusnaturalista da proteção/serviço ou graça/serviço, sendo possível ao tomador assumir uma posição de senhorio.
O homem cria sociedades para o
serviço, pois é justamente essa
a forma mais apropriada de se
trabalhar com um máximo de ordem
e eficiência necessários.
Com melhor explicação: servir é inerente à natureza do homem. O homem cria sociedades para o serviço, pois é justamente essa a forma mais apropriada de se trabalhar com um máximo de ordem e eficiência necessários; prova disso são os grandes empreendimentos que não poderiam ser realizados se as relações jurídicas de trabalho fossem todas de pura coordenação (Alguém precisa mandar). Entretanto, como se viu, por causa do pecado o trabalho do homem na terra será sempre penoso.
Logo, ao contrário do proclamado pela modernidade, a servidão não é algo ruim, ou sequer semelhante à escravidão, pois ela é ordeira e boa. Frisamos que foram as ideologias modernas e rebeldes que cuidaram de denegrir o serviço, equiparando-o ou dizendo-o semelhante à escravidão.
Logo, nessa medida, uma vez celebrado um contrato para o trabalho, o tomador haverá de assumir uma função senhorial (ou patronal, como se queira). Conceitua-se, portanto, o senhorio como o direito subjetivo de servir-se de algo: sujeito ou objeto; pessoa ou bem. Com efeito, não é sem razão que chamamos a Deus, Senhor, e à sua santíssima Mãe, Senhora.
Lembremo-nos que a Deus devemos, embora Ele não necessite, toda honra, glória e amor. E assim o é por pura justiça dos méritos Dele e em favor de nosso maior bem e felicidade. Ele é o Criador e tem, portanto, a faculdade de se servir de suas criaturas e, na exata medida em que Ele é o Sumo Bem, o seu domínio se exerce justamente em nosso próprio favor e para nossa maior felicidade; logo é muitíssimo recomendável pela prudência e pela caridade dentre todos os outros motivos servir a Ele.
Portanto, à semelhança dos seres, que tem seu melhor uso e fruição conforme se lhes atenda à finalidade para a qual foram feitos, assim acontece em relação ao humano, que, criatura de Deus, tem por finalidade servi-Lo; honrando-Lhe, glorificando-Lhe e amando-Lhe em todas as atividades que lhe forem postas na vida.
Explicado isso, chegamos ao ponto de concluirmos sobre o senhorio de um homem sobre outro, que, ao contrário do senhorio de Deus, se faz somente por necessidade mútua e por um relativo amor.
Chegamos igualmente ao ponto de distinguir a servidão da escravidão. Brevemente; nesta há uma redução de um sujeito de direitos em objeto de direitos, de uma pessoa em um bem ou coisa. Já naquela há a conservação plena do status de sujeito de direitos.
Logo, se de um lado o senhorio de Deus é absolutamente gratuito e servi-Lo tem como resultado o nosso único e exclusivo bem, de outro lado, em sentido contrário, o senhorio de um homem sobre o outro será oneroso já que ao contrário de Deus o homem tem diversas necessidades que precisam ser satisfeitas, e o bem obtido, portanto, embora seja verdadeiro bem, será relativo e repartido.
Lembremo-nos, também, que Deus, ainda que Senhor se pôs também a serviço do homem (para que este pudesse se salvar); de maneira que demonstrou de uma maneira induvidosa que tanto o senhorio, quanto o serviço, são revestidos de dignidade. Ora, sendo o homem semelhante a Deus seu senhorio e seu serviço devem ser semelhantes aos de Deus. Há, pois, no senhorio uma espécie de serviço implícito. (Note-se que se utilizou o vocábulo semelhante e não igual.)
Nesse sentido, o senhorio de um homem para com o outro é um direito subjetivo ao serviço deste outro. Tal direito poderá ser oriundo de lei (natural) ou de um negócio jurídico bilateral (contrato).
O senhorio que se origina da lei natural é o senhorio por excelência, que decorre de um fato pretérito muito maior capaz de conferir-lhe total legitimidade. Trata-se de algo chamado paternidade no âmbito familiar. Os pais são senhores por excelência, ou seja, todo pai, toda mãe, é senhor ou senhora. Deus é Pai; logo seu senhorio não é fruto de qualquer espécie de convenção, mas se faz por justo direito.
Também de origem legal (jusnaturalístico) é o senhorio exercido pelo Sumo Pontífice, o Papa, cujo nome traduz sua própria legitimidade. Com efeito, foi Nosso Senhor Jesus Cristo em pessoa quem assim o determinou, e, via de conseqüência, o Papa (o nome já o diz) é, por assim dizer, o tutor ou pai adotivo da Igreja. Ele é o Pontífice, aquele que faz a ponte entre a Igreja e Cristo.
Enfim, o fato é que todo senhorio ou domínio tem por origem Deus; seja diretamente por direito próprio e potestativo, seja indiretamente por convenção, como nos contratos para o trabalho, por exemplo.
Entenda-se bem: da mesma forma que existem serviços ou bens que somente podem ser fruídos individualmente, também ao homem somente se faz possível servir com justiça ao Senhor seu Deus, pois sua natureza (do homem); a sua finalidade última, é exatamente essa. Não se pode servir a Ele e também a um terceiro por ele próprio, ou seja, sem que esse terceiro esteja em nome de Deus ou que sob essa qualidade o servidor assim o faça.
Insiste-se: um machado só atende à sua finalidade se for utilizado enquanto tal e somente é eficaz e pleno quando utilizado por um bom lenhador. Além disso, é impossível, por sua própria natureza, que dois lenhadores se utilizem do mesmo machado ao mesmo tempo.
Assim sendo, o senhorio é justificado pela natureza individualizada, ou pelo menos individualizável, da fruição do serviço humano.
Isso posto, somente as coisas e os bens, ao contrário das pessoas, podem ser disponibilizados (vendidos, descartados, alugados, etc...). Por isso, todas as vezes que um homem fizer outro homem, ou a si próprio, objeto, estará a um só tempo usurpando, se arrogando, de uma dignidade que não lhe pertence, (já que a vida humana a Deus pertence e somente a Ele, ou por Ele, se serve plenamente) bem como se negando a servir a Deus. Ou seja, é justo servir a um homem como sujeito de direitos, mas nunca como objeto.
Por tal razão, defende-se que a inclusão legislativa dos elementos conceituais “riscos da atividade econômica” e “dependência” desvirtuou o senso comum sobre a idéia de serviço e positivou caracterizando a relação jurídica de emprego sob uma inversão lógica que tem por conseqüência a formação de dissensões na ordem econômica que somente podem ser reparadas com a aplicação do princípio jusnaturalista da proteção/serviço ou graça/serviço.

SPES - Santo Tomás de Aquino: A Contemporânea Desvirtuação do Trabalho