Os privilégios do Vale do Roncal, exemplo de sociedade orgânica não planificada – 1

Brasão do Vale do Roncal, Navarra, Espanha
Como 'nobreza obriga', os roncaleses, habitantes do Valle del Roncal, Espanha, estiveram sempre presentes quando se cuidou de empreendimentos comuns à defesa da Fé ou da Coroa. Daí nasceram alguns privilégios coletivos, que os roncaleses mantiveram zelosamente através dos tempos.

É curioso que enquanto sua mais remota epopéia bélica cobre-se com as brumas do mito e da legenda até o ponto de fazer os eruditos hesitarem a respeito de quando aconteceram os feitos, os privilégios derivados daqueles feitos conservam-se até nossos dias com uma vigência concretíssima, excepcional nos tempos presentes.

Dois são esses privilégios ainda atuais, recordações de outras tantas batalhas legendárias.

O primeiro consiste em que todos os roncaleses são nobres 'cavaleiros, fidalgos e infanções' com direito a usarem como próprio o escudo do Vale, de tal modo que para alguém ser armado cavaleiro das ordens militares, ainda hoje basta provar que seu sobrenome é roncalés para ficar demonstrada a nobreza do mesmo.

El Roncal, aldea de Urzainqui, Navarra, Espanha
O segundo privilégio consiste na liberdade concedida aos rebanhos roncaleses para pastarem nas Bardenas Reais.

São Bardenas certos territórios extensos, semi-desérticos, situados na margem esquerda do Aragão, os quais eram propriedade da Coroa. É para lá que se dirige a interminável coluna de ovelhas roncalesas quando a neve cobre as montanhas, através do velho desfiladeiro, numa antiquíssima e famosa migração:

À Bardena do Rei
Já vêm os roncaleses
comer miolo de pão com banha
ao menos por sete meses.
Lá permanecem até à volta da primavera, na qual torna a alegrar-se o Vale com o som familiar dos milhares sininhos de cobre, como canta a 'jota':

Já vem a primavera
já ressoam os címbalos
já voltam os pastorinhos
Com seus lenços ao ar.
Conselho Municipal de Roncal. Joaquín Sorolla, 1914.
Qual é à origem histórica destes notáveis privilégios?

A respeito do primeiro, o que torna nobres todos e cada um dos roncaleses, seus filhos e descendentes, podemos ler na confirmação do foro ou privilégio outorgado pelos reis Dom João e Dona Catarina de Navarra:

“E ainda no tempo d’el-rei Dom Fortuno Garcia (os roncaleses) mataram e venceram el-rei de Córdoba chamado Abderraman, em certo lugar que tinha por nome Olast, perseguindo seu exército. O qual rei tinha matado el-rei Ordoño das Astúrias e tinha passado os montes Pireneus até a cidade de Toulouse, destruindo os fieis e a Fé Católica. Na defesa da qual os ditos roncaleses sempre tiveram bravura e vitória e sempre foram a serviço do dito rei Dom Sancho Garcia, juntamente com os outros valorosos católicos que defenderam e conservaram-se nas montanhas e dali estenderam a Fé Católica nas Espanhas. Pelo que os ditos reis predecessores nossos reconheceram e reputaram, cada um a seu tempo, que os ditos roncaleses foram, eram e são “ingênuos” ( = não-servos), infançõs e filhos-d'algo, e sempre gozaram e gozam das liberdades, honras e preeminências que os ditos infanções e filhos-d'algo gozam...”
A cidade medieval: Os privilégios do Vale do Roncal, exemplo de sociedade orgânica não planificada – 1