Re: Igreja em Portugal.
Senhorio Episcopal do Porto:
A IGREJA E O PORTO ENTRE OS SÉCULOS XII E XV1
Da Jerusalém Celeste ao plano mendicante
A cidade do Porto, no Noroeste de Portugal, era no início do século XIII um activo porto fluvial na margem direita do Douro, a c. 4 km do Atlântico (Figura 1).
As suas condições naturais favoráveis tinham sido potenciadas pelo senhorio episcopal da cidade, doado por D. Teresa em 1120 ao bispo francês D. Hugo (1113-1136), que empreendeu um processo de revitalização e desenvolvimento urbanos a partir da concessão da carta de foral em 1123. No século XIII, todavia, os senhores da cidade mostravam alguma inépcia na adaptação ao rápido desenvolvimento económico, social e urbano de que tinham sido os catalisadores.
Progresso que concedera uma “situação” ao “sítio” inicial românico,1 fechado no seu anel de muralhas e na conceptualidade do simbolismo augustiniano de Jerusalém Celeste (Cf. FRUGONI, 1991, p. 4).
O espaço absoluto, de carácter político-religioso (Cf. LEFEBVRE, 2000, p. 296), produzido pelo senhorio da Igreja, tinha-se então alargado a um território circundante à pequena acrópole da colina da Penaventosa, denominada o “Castelo”, que dominava o Douro, a sul e, a nascente, o vale do rio da Vila (Figuras 1-3, 17).
Expansão que concretizou o plano do senhorio da Igreja, não só de ocupação das zonas baixas ribeirinhas e da sua emergente actividade comercial e artesanal, mas da sua integração, por razões fiscais, num território urbano bem circunscrito, a “Civitate”.
Posterior à divisão das rendas entre a Mitra e Cabido, definitivamente resolvida em 1200, e dada a dupla proeminência temporal e espiritual da Sé, esse processo integrava-se, simultaneamente, na intensificação da organização das contribuições eclesiásticas, sobretudo dos dízimos, que provocaria uma circunscrição mais precisa dos territórios paroquiais.
A integridade objectiva desse espaço seria, todavia, posta em causa pela chegada dos Franciscanos (1233) e Dominicanos (1238), instalados na cintura periférica da cidade românica, no vale do rio da Vila, junto de antiga e importante via romana que unia Lisboa a Braga e Lugo, na Galiza, e do Douro (Figuras 1-3, 6-8, 13).
Advento que deve ser enquadrado no contexto das rápidas transformações da época, também provocadoras de sobressaltos nas consciências (Cf. RODRIGUES, 2001, p. 37).
Nesse contexto, os Mendicantes rapidamente se tornarão um quarto poder, para além dos da Sé, do da Coroa e de um ainda muito débil Concelho, que mantinha uma revolta aberta contra o senhorio episcopal.
Porventura involuntariamente, as instituições mendicantes seriam imediatamente envolvidas nela e, desse modo, os frades menores serão, consciente ou inconscientemente, um dos factores de desagregação do poder senhorial urbano (Cf. MATTOSO, 1985, p. 332-333).
Para isso contribuiu também o facto de, juntamente com os homens-bons da elite mercantil do Concelho, partilharem um terreno e meios de subsistência comuns já que, para eles, a economia monetária era a única alternativa possível à territorialidade senhorial tradicional (FRUGONI, 1991, p. 92).
As condições gerais de implantação mendicante no Porto não foram, portanto, muito diversas das que ocorreram, contemporaneamente, noutras cidades europeias.
O declínio do senhorio, não seria, porém, imediato.
A pressão da Coroa, as constantes questões com os burgueses intensificar- se-iam a partir de D. Dinis (1279-1325) e ao seu reinado corresponde uma expressiva diminuição do poder político da Igreja portuguesa, que deixou de se poder amparar, como fizera até então, a um papado forte.
A proeminência de Pedro chegara ao seu ocaso.
O regímen dos senhorios também; concluída a Reconquista, os reis, apoiados no direito romano e nos novos conceitos acerca da autoridade régia, vão-se preocupar com o fortalecimento do poder central e a organização administrativa do território.
Declínio que abrirá as portas da cidade a um protagonista poderoso, a Coroa, que na Ribeira mercantil, perto do Douro, ergueu em 1325 a sua Alfândega em território usurpado ao Bispo.
A afirmação do poder real no Porto seria ainda reforçada pela construção de uma muralha gótica, que englobou no seu perímetro a zona da Ribeira, a cidade episcopal do Castelo, a sua extensão ocidental, os conventos mendicantes e, de um modo geral, toda a área que integrara a antiga “Civitate” episcopal (Figuras 3, 4, 9).
Todavia, o novo anel de muralhas não delimitava, como o anterior, a unidade sintagmática de um imago mundi.
Quando o vigário episcopal tentou impedir, no ano de 1320, a conclusão do convento dominicano e do alpendre-praça (Figura 8), onde se viriam a realizar algumas das reuniões magnas do Concelho dos homens-bons em luta contra o senhorio episcopal, os frades retorquiram-lhe que a obra se fazia para “proveito da cidade”.
O proveito da cidade é um sinónimo do “bem comum” que o Concelho invocaria pela primeira vez pouco depois, no ano de 1331, quando a Mitra lhe cedeu, por um acordo então efectuado, o rossio da colina do Olival, situada face à Penaventosa, na encosta fronteira do vale do rio da Vila (Figuras 2-4, 14-16).
Desconhecemos até que ponto os Pregadores, conhecidos pelo seu carácter institucional e pelo zelo com que se dedicavam ao ensino nas suas escolas de Teologia, terão no Porto contribuído para a elaboração de uma ideologia concelhia.
Podemos, contudo, intuir esse contributo, já que a colaboração entre os Pregadores e o Concelho chegará ao ponto de este ter financiado os estudos de dois teólogos do convento, um dos quais em Oxford (BRANDÃO, 1960, p. 253-254).
Desse modo, durante algumas décadas pareceu possível a utopia tomista de uma cidade organizada em torno da aliança entre mercadores e Dominicanos e equilibrada nestes últimos.
O que terá importantes efeitos no plano urbano, já que a nova ideologia assinalou ao convento dominicano um papel de centro religioso e cívico que pretendeu substituir-se ao antigo, da cidade episcopal da Penaventosa.
Não admirará, portanto, que em época de triunfo do mensurável, a nova centralidade se alicerçasse na geometria.
De facto, o convento seria determinante para o traçado da muralha gótica, estruturado por uma circunferência, com centro no seu claustro, que tocava igualmente a fachada da Sé; a cerca, contudo, não seria o único elemento topográfico do plano urbano a ser condicionado pela geometria.
Em S. Domingos cruzaram-se ainda duas linhas que dividiram a circunferência em quatro partes: uma, no sentido norte- sul, unia a porta do Olival à Alfândega e ao postigo do Terreiro, junto ao rio; a outra, perpendicular a ela, no sentido nascente-poente, ligava o postigo da Cordoaria Velha à Sé.
A geometria mendicante implicou uma mutação decisiva na ubiquidade do imago mundi de que a acrópole episcopal e, após ela, a “Civitate”, desfrutaram nos séculos XII e XIII.
Com ela, o incorpóreo espaço absoluto aproximou-se do homem, proclamando a benéfica utopia do poder razoável do bem comum (Cf. LEFEBVRE, 2000, p. 296).
O plano, contudo, recorreu a conteúdos antigos: o numerus, a conjugação entre a forma fechada do círculo e a forma aberta da cruz, a teoria antropomórfica, os cordeamentos e alinhamentos.
Assim, será possível ver nele aspectos de continuidade em relação às práticas urbanísticas consolidadas do urbanismo regulado e a uma das suas imagens de marca, o pré-desenho.
Urbanismo regulado que se desenvolveu, aliás, paralelamente ao triunfo do mercado (cf. CALABI, 2004, p. 12) sobre o sagrado.
Embora utilize algumas das suas ferramentas, contudo, a visão integradora do plano, a escala e o conjunto de objectivos que demonstra situaram-se bem para além das geralmente pragmáticas, imediatistas e pouco ambiciosas realizações concelhias.
O seu alcance será, de facto, bem mais vasto; após a progressiva queda do elemento maravilhoso, ou sagrado, que agregara a cidade de D. Hugo, investiu o espaço urbano de uma emergente capacidade de representação (Cf. TAFURI, 1992, p. 35; FRUGONI, 1991) e, por- tanto, de desencriptação simultânea do “mundo” e da impenetrabilidade do símbolo que o encobria (FRUGONI, 1991, p. 111).
Com o plano mendicante, do espaço absoluto emerge uma paisagem urbana, com os diversos níveis formais, sociais, históricos e simbólicos que o conceito implica.
O plano não possuía ainda um fundamento estável, nem correspondia à sistematização, matemática e verificável, do “mundo posto em imagem” que será configurado pela perspectiva humanista (TAFURI, 1992, p. 35).10
Era, contudo, capaz de integrar a cidade, sublinhando uma ideologia comunitária e efeitos de coralidade; associou-se, por conseguinte, ao desenvolvimento de formas políticas de organização urbana.
Na Idade Média, elas estariam ligadas não só à descoberta de uma espacialidade nova e interrelacionada, como à construção dos primeiros edifícios públicos de carácter não sagrado (FRUGONI, 1991, p. 110).
Surgem assim a rua Nova, a Judiaria e o Paço do Concelho, este destinado a albergar a deputação política da cidade.
A rua Nova
Quer a rua Nova, quer a Judiaria e o Paço do Concelho são o resultado natural do século XIV dominicano, embora assinalem igualmente a sua exaustão.
A Coroa portuguesa manteve sempre as aspirações e revoltas concelhias sob um apertado controle e a vitória da nova dinastia de Avis após as guerras da Independência com Castela (1383-1385) apressará a progressiva aristocratização dos mercadores que apoiaram a sua causa e será ainda potenciada pela chegada dos oficiais régios à cidade.
A hierarquização produziu topografias sociais próprias, até então pouco perceptíveis; a rua Nova, aberta a partir de 1396 (?) por D. João I (1385-1444) para uma elite de funcionários reais e de dependentes da Coroa e a Judiaria (1386), zona de exclusão dos judeus no rossio da colina do Olival, a ocidente do vale do rio da Vila, que o Concelho adquirira à Mitra.
Os princípios gerais que orientaram a criação dos planos da rua Nova e da Judiaria estão na linha do desenvolvimento urbano “regulado” que, pelo menos desde o século XIII, criara no Porto extensões ortogonais na Civitate episcopal, baseadas na associação travessa/quarteirão, como a Ladal (Figuras 2-3; 17-18) e, fora dos seus limites, a Vila Nova de Miragaia14 (Figuras 3, 19-20).
A partir do início de Trezentos, os mesmos princípios de planeamento, apoiados agora na acessibilidade do elemento modelador da configuração morfológica do habitat, o lote burguês, longo e estreito, ao antigo caminho tornado via mercantil, produzirão uma morfologia diversa: a via radial, de escrita topográfica concêntrica, que circuitou a muralha românica do Castelo da Penaventosa e, a partir da Porta de Vandoma e da estrada de Penafiel, a oriente, alcançava o Douro, segmentando-se em três troços consecutivos: ruas Escura, da Bainharia e dos Mercadores15 (Fi- guras 5, 10 - 13, 21, 24).
Pela mesma época novas extensões ortogonais, com base no conjunto travessas/quarteirão, serão criadas na zona das Tendas, frente à Sé e em S. Nicolau, nesse caso no seguimento da criação da Alfândega Real (Figuras 5, 9, 11, 12, 21).
Assim, a rua Nova e a Judiaria integram-se numa longa tradição de planeamento urbano em que o carácter ortogonal não foi a condição mais importante.
O que não obstou à existência, sempre, de um plano; não existe uma cidade acidental, nem o tipo de desenvolvimento “espontâneo” ou “orgânico” que lhe são frequentemente associados.
O poder político rapidamente esgotou essas possibilidades de organicidade.
Desse modo, o rápido desenvolvimento urbano do século XIII e o sinoecismo que o caracterizou terão levado, em primeiro lugar, à necessidade de integração dos diferentes núcleos populacionais circundantes à cidade episcopal amuralhada num território com margens geográficas e fiscais bem definidas, a Civitate.
Regrou-se, por conseguinte, o complexo processo de criação dos lotes, unidades simultaneamente morfológicas, jurídicas e económicas, que implicava a articulação de meios importantes.
Será por osmose dos parcelamentos marginais, supervisionados pelos “maiorinos”, primeiro episcopais e depois reais, que os caminhos entre os núcleos se transformam em ruas, ou se criaram grelhas ortogonais que se articularam com eles.
A rectilínea e ampla rua Nova e a Judiaria, esta formada por duas vias que se ligam em ângulo recto, combinam esses dois modos: nelas, a progressiva sofisticação dos meios postos à disposição dos agentes de criação urbana associou-se à emergente capacidade de representação do poder real e à ausência, no local em que se abriram, de preexistências urbanas para uma optimização da regularidade geométrica.
Das torres à fachada
Na rua Nova, as habitações eram construídas em pedra, material com uma forte carga simbólica, mas não possuíam ameias que, naquela que foi a sua imediata antecessora, a rua dos Mercadores, rematavam desde o início do século XIV as residências da elite mercantil associada a S. Domingos.
Designadas casas-torre, essas arquitecturas multifuncionais seguiam o modelo comum da habitação senhorial, que, antes de ser habita- ção de clérigos e mercadores, fora signo do poder jurisdicional da Igreja na cidade.
Eram marcadas pelos valores verticais, pela escassez e irregularidade das aberturas, pela utilização quase exclusiva da pedra e pelas ameias de remate, sendo estes os seus elementos simbólicos de maior importância.
Sendo a rua Nova um espaço de representação da Coroa, o novo senhor da cidade, desde que em 1405 comprou o senhorio episcopal a uma Igreja profundamente debilitada, compreende-se que as ameias não tenham sido permitidas.
O que não sucedera nos Mercadores, disparidade que apenas demonstrava a inépcia e debilidade do antigo poder eclesiástico e o vigor do novo.
As torres associavam ainda o simbolismo a uma pragmática resistência ao fogo, o que as tornava, numa cidade maioritariamente de madeira e taipa, especialmente aptas para a guarda de mercadorias; desse modo, também a Alfândega Real será constituída por duas torres, que adicionavam as funções de armazenamento e de residência ao simbolismo régio das ameias (Figuras 9, 23-25).
Santo Agostinho afirmou que toda a doutrina cristã se relacionava, ou com coisas ou com signos, e que as primeiras se apreendiam através dos segundos.
Elas dividiam-se em três categorias; a terceira integrava as que se destinavam a ser utilizadas e eram, simultaneamente, signos.
Não podiam, por essa razão, ser apreciadas em si próprias, podendo apenas ser usadas porque significavam o que, verdadeiramente, devia ser apreciado.
A arquitectura, como as artes visuais, integrava-se nessa terceira categoria; como tal, era essencialmente um meio de tornar visível o invisível.
A designação – Gazophilachio – que o bispo D. Pedro Martins aplicou no século XIV às torres da Alfândega, associando-as ao tesouro que Salomão conservava no templo de Jerusalém, denota bem essa linguagem, em que o peso e importância do símbolo eram bem maiores do que o peso e importância da forma.
Assim, as torres podiam crescer, avançando sobre as parcelas vizinhas – nesse caso sendo por vezes designadas “casas grandes” – diminuídas, divididas, transformadas ou decoradas sem que o seu significado fosse alterado; sistemas puros, autossuficientes e com códigos internos próprios, nada impediria a sua plasticidade orgânica.
Mas a casa-torre foi também um elo importante na cadeia que levou à desencriptação do simbolismo objectivo e da fisiognomonia da arquitectura medieval.
Descodificação que, no Porto, terá ocorrido a partir do século XIV, quando a torre quadrangular, obrigada pelo plano ao lote burguês comprido e estreito, se tornou rectangular e se voltou para a rua, numa manifestação de orgulho cívico, de solidariedade da classe mercantil e de capacidade de integração de expectativas sociais.
O que implicaria um processo de sofisticação da parede fronteira que a transformou numa fachada, ou facies, com o que isso implica de imagem subjectiva (Figuras 23, 25) e que, frequentemente, originou a “casa grande” por anexação de torres vizinhas (Figura 26).
Integrará ainda outras vertentes que a tornarão duplamente representativa: a capacidade, reconhecida por Vitrúvio, de a arquitectura ser imago de si própria abriu caminho à possibilidade de a retórica se sobrepor à poética.
Pela sua capacidade de influenciar o público, a arquitectura descobrirá então na fachada o jogo de transparências, opacidades e, porventura, dissimulação, que a tornarão particularmente apta para a autorrepresentação do proprietário (Figura 26).
Não será ainda esse o caso da rua Nova, em que o anonimato das frentes “reguladas” se completou na obrigatoriedade de exibição das armas reais.
Formas de representação social antecedem sempre processos de tipificação individual; a heráldica real, contudo, será já um sinal da desagregação da objectividade da torre.
As unidades de paisagem
Não por acaso, a rua Nova articular-se-á com o convento Franciscano, enquanto a relativa penumbra em que entram os Dominicanos no século XV esbaterá a sua centralidade e permitirá a deslocação para sul, e cada vez mais para junto do rio e da Alfândega Real, das linhas complementares à organização geral geométrica “regulada” que tinham criado ou ajudado a criar.
Será em S. Francisco, casa de uma ordem que gozou de grande influência junto de D. João I, que os oficiais régios e a nova elite dos cidadãos que habitavam a rua instituirão preferencialmente as suas capelas de missas, enquanto, no século XIV, o mesmo tinha sucedido em S. Domingos.
O declinar da Idade Média foi, portanto, de afirmação de uma nova sociedade, perfeitamente integrada na órbita da Coroa; a cidade, depois de definitiva e formalmente extinto o senhorio episcopal em 1405 torna-se, por delegação real, num senhorio colectivo, organizado num Concelho onde pontificava o núcleo restrito das mais importantes famílias do patriciado urbano.
O seu novo senhor, D. João I, aumentará a sua área de influência, ao alargar o termo do Porto (Cf. SOUSA, 1982, p. 167-173).
Esse acto administrativo será completado pela edificação da torre do Paço do Concelho na cidade românica, junto da catedral (c. 1405) (Figura 10; 21-22).
A nova situação política estará na origem de uma apropriação que foi, simultaneamente, morfológica e simbólica, já que o paço, como a casa-torre, roubaria a forma do signo do poder jurisdicional da Igreja na cidade.
No Porto, como na Europa medieval, a institucionalização dos poderes laicos e a sua centralização seguiram modelos originalmente eclesiásticos, que igualmente desempenharam um papel muito importante no desenvolvimento das noções de comunidade e representação política (cf. VERGER, 1986, p. 31 et seq.).
O Paço não se enquadrava portanto numa “tipologia” com uma morfologia própria, antes era, como outras construções medievais, a expressão ideal de exigências muito gerais.
Mais do que cumprir um programa específico, foi desenhado para satisfazer as necessidades profundas de formação de um símbolo cultural.
O local escolhido, a poucos metros da Sé e da residência episcopal, também não seria inocente.
Assim, o senado burguês assumia-se como sucessor do senhorio eclesiástico, atribuindo-se alguma da poderosa carga simbólica do antigo centro; o suplemento de autoridade política, que lhe foi concedido pelo alargamento do termo, apenas poderia beneficiar através da associação a uma fonte de força espiritual.
A verticalidade do paço concelhio veio substituir a horizontalidade do alpendre/praça de S. Domingos, mas conservando algumas das suas propriedades, inclusive porque se localizou, não por acaso, sobre a circunferência da geometria dominicana em que se apoiou a muralha.
Em simultâneo, ele significou tam- bém a nova organização camarária, mais restrita e ainda mais dependente do poder real, ordenada por D. João I, que para tal extinguiu as reuniões magnas dos homens bons, em 1391 (Cf. SOARES, 1962, p. 370 et seq.).
Eximeinis dava lugar a Arévalo;23 no discurso concelhio, o “bem comum” da cidade será também, senão substituído, pelo menos acolitado por um mais aristocráti- co “nobrecimento”, elevado ao conceito de categoria estética.
As transformações culturais, sociais, políticas e morfológicas da paisagem urbana do Porto só foram possíveis pela progressiva decadência da Igreja a partir do século XIII.
Com ele esvai-se o projecto da cidade aberta, que tinha por finalidade única o desenvolvimento do programa da Igreja, fundado na ideia de paz, felicidade e harmonia, premonitória do reino de Deus; foi a esse ideal de justiça e igualdade que os Mendicantes trouxeram um contributo decisivo (JEHEL; RACINET, 1996, p. 169-170).
A sua aliança com o mercado, contudo, teria efeitos colaterais perversos, apressando o fim do sistema senhorial e, com ele, da utopia universal eclesiástica; o imago urbis, que durante mais de um milénio sustentara a visão cristã, acabará por afundar-se no ideal laico mendicante da cidade do bom governo e do bem comum.
A crise acentuar-se-á em Quatrocentos, com a integração das hierarquias eclesiásticas na órbita da Coroa e a profunda decadência da vida monástica e do clero secular; simultaneamente, contudo, verificam-se os primeiros sinais de Reforma (Cf. DE- LUMEAU, 1968; MARQUES, 2004, p. 289 et seq.), a que se pode associar a instalação de novos conventos no interior do perímetro urbano amuralhado: Santa Clara (1416) e Santo Elói (1491) (Figura 10); ambos se associam a S. Domingos, embora o segundo se encontre, igualmente, preso na teia “regulada” da rua Nova e à sua fundação esteja associado o franciscano Frei João de Xira, originário do Porto, conselheiro e confessor de D. João I (Cf. BRANDÃO, 1960, p. 282, 309, 312-315).
A aproximação urbana operada em diferentes momentos por Clarissas e Lóios denota sintomas de uma mudança cultural decisiva, associada à progressiva autoconsciência de uma sociedade mercantil citadina de onde emergirão os primeiros sinais de regeneração religiosa.
O movimento da devotio moderna, caracterizado pela individualização e interiorização do sentimento religioso, que marcou o mundo renano-flamengo do século XV será, no plano espiritual, uma das suas principais manifestações; a Observância, um dos primeiros grandes movimentos reformadores da Igreja, será outra.
D. Filipa de Lencastre, que esteve na origem da deslocação das Clarissas para o Porto, cidade onde se casou, era filha do poderoso e influente João de Gand, nascido na Flandres; o confessor real Frei João de Xira foi das figuras mais importantes da Observância Franciscana portuguesa.
O rei D. Afonso V (1448-1481) comparava a rua Nova ao seu paço: “...rua era a salla e as casas herão as câmaras, o mosteiro era a capella e a praça o jardim...” (BARROS, 1919, p. 38).
Da metáfora real sobressai o intimismo da devotio, que será decisivo para o homo clausus humanista.
Com ele, e o seu individualismo consciente, prosperará a cultura de representação que profundamente marcou a arquitectura e o urbanismo da Idade Moderna.
Mas a metáfora demonstra, igualmente, uma viragem decisiva: a cidade tornara-se definitivamente uma paisagem urbana que não coincidia com um símbolo universal.
Entendia-se como uma agregação não só de espaços particulares, mas de diversos níveis de significados, incluindo o simbólico (FRUGONI, 1991, p. 4).
Assim, no século XV, era possível detectar no Porto intramuros três grandes unidades de paisagem: Penaventosa, Ribeira e Olival (Cf. SOUSA, 1982, p. 148-153; COSTA, 1999, p. 486-502) (Figura 27).
Cada uma delas possuía particularismos geográficos, bem como estratigrafias morfológicas, económicas e sociais diversas, correspondendo a uma cartografia de significados frequente na Idade Média europeia: cidade sagrada, cidade mercado e cidade de exclusão.
Mapa que coincidiu igualmente com os três grandes núcleos de propriedade, respectivamente da Igreja, da Coroa e do Concelho (ver AFONSO, 2001, p. 43-44).
Em cada uma dessas três unidades de paisagem as características maiores, embora prevalecentes, não eram absolutas.
Individualmente, porém, cada uma delas seria capaz de as decantar e resumir em sínteses próprias: a Judiaria no Olival, a rua Nova na Ribeira e, na Penaventosa, a cidade episcopal amuralhada do “Castelo”.
Esses núcleos de paisagem, mas igualmente de domínio, coincidiram, nos casos da rua Nova e da Judiaria, com assinaláveis unidades de carácter morfológico e cronológico.
Na cidade episcopal, a ausência dessa coesão seria compensada pela forte lógica espacial concedida pelo muro e pelo poderoso simbolismo político-religioso.
O espaço absoluto da Jerusalém Celeste do século XII tornara-se no espaço fragmentado da cidade nominalista do final da Idade Média.
Para obstar a essa situação, importantes meios de integração serão, sobretudo a partir dos finais de Quatrocentos, postos em marcha; eles utilizarão preferencialmente, no seu objectivo de produção da paisagem urbana coerente do Estado Moderno, o novo e poderoso instrumento da imagem da cidade, que se tornou, ela própria, instrumental para a transformação urbana
http://periodicos.pucminas.br/index....load/3283/3625
La Iglesia es el poder supremo en lo espiritual, como el Estado lo es en el temporal.
Antonio Aparisi
Marcadores