Sobre o mau uso da expressão “Tradição Viva”
Desculpem-me pela demora, eu pretendia ter retornado mais cedo. Os deveres de estado, porém, tomaram-me um tempo considerável nas últimas semanas. Como disse no último artigo, é necessário, mais do nunca, estarmos preparados para enfrentar os questionamentos daqueles que desconhecem a Tradição Católica, ou mesmo as furiosas investidas dos inimigos empedernidos que não suportam a restauração da Tradição. Algumas questões, para quem conhece a Tradição, são muito claras. Mas, devido às maquinações modernistas, conceitos simples acabam por se tornar perigosas armadilhas para os incautos. Aparentemente, muitos repetem os slogans modernistas com ingenuidade pueril, sem serem capazes de distinguir como eles são opostos à doutrina católica. Estas pessoas são os famosos inocentes úteis que, apenas por terem ouvido tal ou qual expressão da boca de um clérigo, põem-se a repeti-la como se doutrina católica fosse. Se antes confrontassem o que dizem muitos clérigos atuais, inclusive altos prelados, com o que a Igreja sempre ensinou, verificariam a heterodoxia dos mesmos e não lhes auxiliariam na sua encarniçada luta, desde dentro, contra a Igreja Católica. Exemplo muito corrente desta manipulação é a expressão Tradição Viva, que é freqüentemente interpretada pelos modernistas de maneira a inverter sua signficação católica. Para um católico, Tradição Viva é aquela que não deixou de existir, aquela que se mantém. Se a doutrina da Igreja é transmitida de maneira imutável ao longo dos séculos, temos uma Tradição Viva. Se cremos exatamente na mesma doutrina que os católicos de todos os séculos precedentes, temos uma Tradição Viva. Se fazemos todos os anos a procissão de Corpus Christi, se todos os anos comemoramos o Natal e a Páscoa, isto é uma Tradição Viva. Se o rito da Santa Missa se mantém essencialmente o mesmo desde os tempos mais remotos do Cristianismo, temos uma Tradição Viva. Todo o desenvolvimento litúrgico da Igreja foi harmônico com o passado, tornando a liturgia sempre mais bela, sem jamais desfigurá-la. A Tradição, para um católico, seria morta de deixasse existir. Se fosse possível, o que não é, que toda a Igreja universal pudesse deixar de crer uma determinada verdade de fé católica, esta tradição estaria morta. Ou, da mesma forma, se toda a Igreja universal, sem exceção, abandonasse o venerabilíssimo rito tridentino, e os demais ritos antigos, para celebrar a missa nova, a tradição litúrgica do Ocidente estaria morta, pois o novus ordo é uma fabricação protestantizada em ruptura com a Tradição Católica. Por outro lado, para um modernista, Tradição Viva significa aquela tradição que se transforma, que se adapta. Tradição “morta” seria aquela estagnada, que não muda. Percebe-se claramente a influência de um pensamento evolucionista nesta concepção. Sim, porque o entendimento de vida como mudança contínua nada mais é do que um preconceito evolucionista. O evolucionismo biológico, que estabelece como origem de seres mais complexos a contínua mutação de outros seres mais simples, nada mais é do que a ilegítima aplicação deste preconceito filosófico ao mundo natural. Da mesma forma que a evolução biológica geraria novas espécies, que já não são mais as anteriores, a Tradição “Viva” dos modernistas gera novos ritos, novas crenças, novas condutas morais que não são mais, de forma alguma, aquelas que nossos antepassados celebravam, nelas criam, a elas obedeciam. A Tradição “viva” dos modernistas não implica mudança apenas nos acidentes, mas uma profunda mudança na própria essência da nossa santa religião. É evidentíssimo que os dois conceitos de Tradição Viva, o católico e o modernista, são incompatíveis entre si. Mais do que isso, são absolutamente contrários. Para não sermos vítimas desta fraude teológica, não devemos cair na armadilha da “tradição viva” tal qual a entendem os modernistas. Quando eles utilizam esta expressão, querem significar a sua concepção, mas o católico inocente imagina a interpretação ortodoxa, deixando-se levar pelo jogo de palavras. Esta expressão, portanto, não passa de uma estratégia utilizada pelos modernistas para confundir a verdadeira questão. O que nos interessa, como católicos, é saber se houve ou não ruptura com a Tradição Católica. Este é o verdadeiro mérito da questão, que o termo ambíguo “tradição viva” tenta esconder: se houve ou não ruptura. A doutrina em que cremos, a moral que praticamos, os ritos que celebramos, devem estar todos eles em perfeita harmonia com tudo o que a Igreja Católica sempre nos ensinou desde os seus primórdios. Esta é, aliás, a regra que São Vicente de Lérins já nos ensinava para distinguir a verdadeira doutrina católica: aquilo que sempre, em toda a parte e por todos os católicos foi tido por verdadeiro. Portanto, sempre que alguém quiser nos impor obediência a algo pressionando-nos pelas palavras mágicas “tradição viva”, devemos avaliar se houve ou não ruptura com o ensinamento de sempre da Igreja. Caso não tenha havido, realmente trata-se de Tradição católica. Caso haja ruptura, o termo “tradição viva” está sendo utilizado no sentido modernista, evolucionista e anti-católico. Não devemos cair no canto da sereia: simplesmente rejeitamos o sofisma, porque esta “tradição” em ruptura com o passado está morta, e não viva. A Tradição à qual devemos obediência é aquela em perfeita harmonia com toda a história da Igreja. A tradição “viva”, em ruptura com o passado, são palavras vazias, sofistas, que só impressionam os ignorantes. Contra aqueles que nos quiserem impor uma tradição “viva” como esta, simplesmente mostremos as rupturas e peçamos para que eles nos expliquem como pode a doutrina de hoje contradizer a de ontem. Os sofistas vão fugir como o diabo foge da Cruz.
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