Em primeiro lugar, e ainda antes de iniciarmos a análise e posterior discussão do primeiro documento do Concílio Vaticano II, impõem-se algumas clarificações imprescindíveis para uma correcta compreensão do que neste blog se defende.
1 Defendo, tal como a Fraternidade São Pio X e Msr Marcel Lefebvre sempre defenderam, que o Concílio Vaticano II é válido porque foi convocado e encerrado por legítima autoridade da Igreja, os papas João XXIII e Paulo VI, respectivamente. Estamos, portanto, perante um Concílio ecuménico da Igreja católica.
2 No entanto, a minha consciência e todos os estudos que já fiz dizem-me que, para permanecer católica e fiel à fé dos meus antepassados, de todos os santos doutores, mártires e papas pré-conciliares; para permanecer fiel à doutrina e magistério de sempre, não posso aceitar como católicas todas as doutrinas ensinadas pelo Concílio Vaticano II. Nas palavras do Instituto do Bom Pastor, recentemente criado por Sua Santidade Bento XVI como Instituto de direito pontifício, o Vaticano II propôs-nos os principais problemas da modernidade, como a questão da liberdade de consciência, por exemplo. Ainda segundo as palavras do IBP que subscrevo inteiramente, o Concílio Vaticano II, na sua letra e não somente no seu "espírito", apresenta alguns pontos de descontinuidade (ruptura, portanto) com o Evangelho e a Tradição católica.
3 Assim sendo, embora se trate de um Concílio ecuménico, o Vaticano II, ao introduzir muitas doutrinas contrárias ao que sempre foi ensinado pela Igreja e crido pelos fiéis, coloca-se numa situação «anormal e muito delicada que, pela sua novidade, tem merecido a atenção de bispos, cardeais, sacerdotes, teólogos e, claro, leigos. A aplicação das reformas desejadas pelo Vaticano II tem suscitado acesas discussões no seio da Igreja católica e até fora dela porque, se por um lado alguns desejam uma verdadeira revolução doutrinal, litúrgica e teológica; uma ruptura total com o passado, por outro, outros pretendem manter-se fiéis à fé católica integral, conservando intacto o autêntico e sagrado depósito de doutrina que receberam dos que os precederam na fé.
4 Neste sentido, e porque existe de facto uma gravíssima crise na Igreja, única, sem qualquer precedente na História, também os leigos, como esta miserável criatura que nem sequer tem formação em teologia, são chamados a contribuir, na medida das suas capacidades (que no meu caso são poucas e más), para as discussões que se afiguram cada vez mais necessárias. É, portanto, nosso dever permanecer católicos e, para tal, é preciso esclarecer, a todos quantos não compreendem a nossa posição, o porquê da desconfiança e até rejeição de quase tudo quanto foi ensinado pelo Vaticano II. Noutras palavras, o facto de sermos leigos não nos exime de responsabilidades na defesa da fé católica tal como sempre foi vista, ensinada e praticada ao longo de dois milénios desta sacrossanta, única e verdadeira religião. Perante a crise que assola a nossa tão amada Igreja, esposa imaculada do cordeiro sem mancha, temos o dever - a nossa consciência assim o exige – de pugnar pelas verdades eternas, imutáveis e absolutas que, de modo nenhum, podem ser negociadas ou transformadas em novas "verdades" como, veremos, pretendeu muito ambiguamente o Concílio Vaticano II.
5 Muitos católicos, uns seguramente por ingenuidade, ignorância invencível e na sua maior boa fé, outros por comodismo, covardia ou uma mais que possível inclinação ao chamado progressismo, defendem que a crise em que se encontra a nossa amada Igreja é fruto de interpretações abusivas dos textos conciliares; de abusos que se deram no pós-Concílio. Estes, pretendendo salvar a ortodoxia do Concílio, advogam que:
Os textos conciliares são bons, nada têm de heterodoxo;
foram as interpretações ilegítimas, os chamados abusos interpretativos, que deram origem à crise pós-conciliar;
no pós-Concílio, deram-se muitos abusos frutos do "espírito do Concílio" que condenam.
Resumindo, condenam o "espírito" mas tentam, através das mais incríveis ginásticas interpretativas (viva o livre exame neoprotestante!) e acrobacias intelectuais dignas dos maiores sofistas, salvar a letra do Concílio que, segundo eles, seria ortodoxa e conforme com a Tradição. Fazem interpretações totalmente ilegítimas e falsas dos textos conciliares, interpretações essas que de modo nenhum se podem deduzir da letra do Concílio, tanto mais quando já se estudou suficiente e razoavelmente a doutrina católica e se tem alguma formação em lógica aristotélica-tomista.
Veremos que a letra do Concílio propicia, sim, as anticatólicas interpretações mais progressistas que dela fazem os que agem de má fé.
6 Neste debate, que espero seja elevado tanto no conteúdo quanto na forma, procurar-se-á discutir os documentos do Vaticano II, a sua ortodoxia ou falta dela, a sua continuidade ou ruptura com o magistério anterior (tanto o infalível quanto o tendencialmente infalível), as suas implicações práticas na vida quotidiana dos católicos, as novas doutrinas que introduziu ou não, a sua pastoralidade, a sua nova eclesiologia, a sua correcta interpretação caso possa ser salvo. É, portanto e como já foi acima referido, uma discussão que se pretende séria e fundamentada nas duas fontes da revelação: a sagrada Escritura e a Sagrada Tradição. Também, logicamente e de forma indispensável, no sagrado magistério dos romanos pontífices, único e legítimo intérprete destas duas fontes da divina revelação.
7 Mais algumas notas:
O Concílio Vaticano II quis expressar-se a um nível pastoral, não sendo, contrariamente aos concílios de Trento e do Vaticano I, dogmático e infalível. A Concílios dogmáticos e infalíveis como os dois supracitados, deve o católico aderir com fé divina e católica. A um concílio pastoral como pretendeu ser o Vaticano II, apenas devemos assentimento de fé. Neste caso específico, o assentimento de fé limita-se àquilo que possa, eventualmente, estar de acordo com a Tradição e não a todas as doutrinas ensinadas por este Concílio, doutrinas essas que veremos estarem claramente em desacordo com a fé católica.
Mais ainda, o Vaticano II foi um concílio atípico ou anómalo porque, contrariamente aos demais concílios ecuménicos da santa Igreja, não ensinou nenhum dogma nem declarou anátemas.
Sendo o Vaticano II pastoral, falível e atípico, uma «coisa híbrida na História da Igreja, é-nos totalmente permitido debatê-lo e combater os seus pontos de descontinuidade mais críticos e que comprometem, de forma directa, a nossa permanência ou não como católicos.
8 Quase a terminar estas notas prévias, há que destacar cinco situações distintas que resultam de uma análise dos documentos do Vaticano II:
Primeira situação: as coisas em que o Concílio foi ortodoxo e conforme à Tradição. Com efeito, o Vaticano II não tem só coisas más! Também ensinou, em alguns pontos, catolicamente e, mesmo quando introduziu certas novidades, estas não foram todas contrárias à fé católica. Neste sentido, vejo como algo de muito positivo o novo papel atribuído aos leigos. Se depois houve abusos grandes (e houve!), a letra do Concílio não pode ser responsabilizada por eles. Sejamos sérios;
Segunda situação: as ambiguidades. Os textos conciliares foram escritos propositadamente de forma ambígua para agradar a «gregos e troianos, o que equivale a dizer a conservadores e liberais (progressistas). Nos documentos do Vaticano II, encontramos «coisas pouco claras, de uma ambiguidade digna de grandes «inteligências. Coisas tão ambíguas e bem elaboradas não podem ser o resultado da inocência de quem esteve por detrás da elaboração dos textos. Quem o fez sabia bem o que fazia e com que intenção o fazia. Ora aqui apresentam-se já dois pontos importantes de desconfiança: primeiro, como confiar e seguir textos ambíguos, que não falam com clareza, permitindo várias interpretações? Segundo, se pensarmos a priori que os textos foram intencionalmente escritos de forma ambígua, não só desconfiamos dos textos em si como de tudo o que veio depois do Concílio, dos demais documentos do magistério, feitos já não para ensinar e mandar com autoridade, mas para agradar a todos: para uns ensinam (embora só recomendem, exortem, aconselhem), enquanto que para outros, precisamente por nada mandarem, podem perfeitamente ser desobedecidos. Ora isto é o caos! Foi daqui que surgiu o relativismo e indiferentismo da maioria dos pseudo-católicos pós conciliares. Ou o magistério fala com toda a clareza na interpretação da Escritura e da Tradição, cumprindo a missão que lhe foi destinada, ou nada feito! Ou o magistério ensina universalmente, guia os fiéis e manda com autoridade e para toda a Igreja, sem ambiguidades no discurso, sem eufemismos, ou cada qual faz o que mais lhe agrada! Os textos do Vaticano II abrem enormes brechas para um sem número de heresias e para os abusos que depois se verificaram. Por serem ambíguos, é neles que radica o problema.
Terceira situação: as omissões. Não sei se também para agradar aos dois grupos contrários estabelecidos, o Vaticano II «esqueceu-se de explicitar alguns pontos da doutrina católica de sempre, quando formulava as suas novas doutrinas e mesmo quando tentava colocá-las em continuidade com as anteriores. Veremos, mais à frente, algumas dessas omissões graves.
Quarta situação: as contradições internas. Pois é. Além de apresentar aos fiéis doutrinas contrárias ao magistério de sempre, o Vaticano II, fruto das suas ambiguidades e da vontade de agradar a todos, também se contradiz a si próprio. Não raras vezes, estamos nós tranquilamente a ler um documento do Concílio quando, quase sem notar, nos deparamos com uma mais ou menos grave contradição! Também as veremos lá mais para a frente. Por enquanto, retenhamos que é muito frequente ler algo num parágrafo e o seu contrário, dois ou três parágrafos mais abaixo. Bom, às vezes até é mesmo no parágrafo seguinte!!!
Quinta situação: a pior de todas, a mais grave de todas, a quase incontornável sem uma revisão de todos os textos problemáticos: as heresias, os erros doutrinários, os graves erros contra a fé! Nesta, temos que parar mais tempo, quando analisarmos os textos.
9 Outra coisa que acho muito importante – importantíssimo! – esclarecer é a seguinte: Quando nós católicos tradicionais nos referimos ao Vaticano II como latrocínio ou conciliábulo, não pretendemos, pelo menos a maioria de nós, negar a sua validade e o seu carácter de Concílio ecuménico. Falo por mim e pelos casos que eu conheço. Queremos tão-somente realçar que, em virtude das suas graves ambiguidades, omissões, contradições e erros doutrinários, ele deve ser corrigido; devem ser eliminados os erros e, a longo prazo (esta é a minha opinião), deve ser revogado. Para mim, só a revogação do Concílio poderia resolver a crise mas isso não significa que não o reconheça no que ele é: um Concílio ecuménico pastoral, falível e anómalo. O facto de, um dia, poder vir a ser anulado; o facto de, um dia, passar à História como um anti-concílio, não significa que, agora, neste momento, não o vejamos como válido naquilo que tem de válido e como anti-católico nos seus elementos contrários à fé. Não somos nós, que nenhuma autoridade temos, quem pode dizer se o Vaticano II foi um Concílio legítimo da Igreja ou não. Temos que pensar que sim e obedecer a tudo quanto for conforme à Tradição (que, convenhamos, não é quase nada!) e resistir ao resto (ou seja quase tudo!). Nesta perspectiva, aguardemos as discussões teológicas entre a Fraternidade São Pio X e as autoridades do Vaticano; esperemos a correcção das ambiguidades e o desaparecimento dos erros; aguardemos a revisão dos textos e/ou a correcta interpretação dos mesmos, de acordo com a tradição; e, a longo prazo, esperemos a sua revogação. Repito, para mim esta seria a melhor solução. Em todo o caso, ainda que não seja revogado (que proximamente não será, claro!), ser-nos-á apresentado de outra forma, ser-nos-á mostrado outro Concílio, já sem os erros a que nos habituámos nestes quarenta anos, outro diferente, o de Bento XVI, o que vai resultar das discussões com a FSSPX. Não é o ideal mas, ainda assim, será outro Concílio! Se por um lado não posso dizer que acredito na revogação, a curto/médio prazo, do Vaticano II (não sejamos ingénuos!), por outro, posso afirmar convictamente que acredito numa revisão dos textos conciliares, fruto da crítica construtiva da FSSPX aos documentos.
10 Perante a constatação, caso a consigamos fazer, de que os documentos pré e pós conciliares estão em clara contradição uns em relação aos outros, com quais devemos ficar? A quais deles devemos seguir? Aos do Vaticano II? Afinal, até são mais actuais, foram solenemente promulgados por um Concílio ecuménico, não deveríamos escolher estes em detrimento dos outros, mais antigos e que não foram formulados em Concílio?
Não!
Devemos seguir e obedecer àqueles que ensinam o que a Igreja sempre ensinou, aos que afirmam o que é dito nos catecismos, sucessivamente pelos Doutores da Igreja e por papas anteriores aos mesmos.
Devemos obedecer aos que são mais conformes aos dogmas, à doutrina católica. Se uns contradizem os outros, devemos ficar com os que são verdadeiramente católicos e não com os que, contradizendo a doutrina de sempre, introduzem novas doutrinas que não são católicas. A esses, devemos resistir e desobedecer para permanecer católicos. E desobedecer sem o mais mínimo problema de consciência.
11 Começaremos então, agora, depois destas brevíssimas notas de esclarecimento, a analisar o decreto do Concílio sobre o ecumenismo: Unitatis Redintegratio. Veremos como este documento, quer por ambiguidades e contradições, quer por erros doutrinários, se afasta do magistério dos papas pré-conciliares, nomeadamente da encíclica Mortalium Animos do Papa Pio XI.
Comecemos então!
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