Recusa da beleza, negação do ser: reflexos do mundo sem Deus
(“Só existe beleza onde a inteligência adensa-se na apreensão do real”.)
Sidney Silveira
O verdadeiro êxtase pressupõe o encontro da inteligência com uma beleza real, no plano ontológico — o êxodo do amante na direção do objeto ou da pessoa amada realizado pelas potências superiores da alma, quando estas vencem os obstáculos de ordem espiritual para a fruição da excelência das coisas. Pressupõe, pois, uma espécie de subida mística do plano sensível ao inteligível, um aprofundamento do olhar sobre a realidade sem o qual não é possível dar a cada coisa o seu valor devido, proporcional ao grau de ser e de beleza que possui. Quando, portanto, observamos pessoas embebidas numa espécie de gozo estético ao contemplar algo feio, desarmônico, pobre quanto às formas, incompleto, ininteligível, degradante, sem finalidade, etc., tenhamos a certeza de que se trata de almas profundamente doentes.
Tal doença é caracterizada por um irracional e doloroso confronto com as coisas, pois, como dizia Julián Marías, a realidade não é somente o que existe, mas também o que resiste invencivelmente aos desacertos do espírito humano. Ora, na medida em que a nossa inteligência haure da realidade dos entes a verdade[1], pois as formas inteligíveis são por nós abstraídas das coisas, um erro no tocante à natureza destas será reitor de enganos sem fim. Isto numa escala que pode ir da pura e simples inépcia intelectual à mais dramática inversão do sentido do real, própria de personalidades esquizóides, anti-sociais, megalômanas — que se tornaram incapazes de remorso mesmo após a prática dos delitos mais maldosos; incapazes também de alegria, se considerarmos esta como o deleite proveniente do encontro objetivo da inteligência e da vontade com o verdadeiro, o bom e o belo, aspectos transcendentais do ser.
Pois bem. O fato de hoje a incapacidade de prazer estético com as coisas em si boas ter-se transformado numa espécie de patologia coletiva, em nível mundial, não lhe tira o caráter de doença do espírito, pois a essência de qualquer ente — e a fortiori do ente humano — é medida pela operação de suas potências distintivas, e não por níveis de déficit que acidentamente apresente no conjunto da sociedade. Assim, "extasiar-se" com o disforme, com o absurdo, com o grotesco, com o patético, com o fantasmagórico (situações típicas da pós-modernidade, em particular do tempo presente, que nem a mais fértil mente surrealista chegou perto de conceber) é em certo sentido tão antinatural quanto abrir os olhos e não ver, mastigar um alimento e não sentir sabor. Ocorre o seguinte: em qualquer ente composto de ato e potência, matéria e forma, substância e acidentes, essência e ser, as deficiências nas potências superiores são mais corruptoras da natureza do que as que atingem as potências inferiores, razão pela qual não nos desumanizamos ao perder uma perna, um braço ou os dentes, mas sim ao recusar a verdade, ao apetecer a indignidade e a feiúra em si mesmas, ao querer o mal, ainda que sob a aparência de bem.
Como se pode deduzir das premissas acima, a apreciação da beleza é instrumento da educação para a verdade e para o bem. Mas para o homem realmente saborear a beleza, enquadrá-la em suas reais dimensões, assimilá-la nos graus relativos às suas formas entitativas, aos seus modos de ser, é preciso ir limpando a inteligência tanto quanto possível dos falsos princípios, das premissas equivocadas — pois só existe beleza onde a inteligência adensa-se na apreensão do real. Daí dizer com muito acerto o tomista argentino Octavio Derisi que toda atividade noética nasce do ser e tem o ser como fim.
Sendo assim, quanto mais uma inteligência antinaturalmente se afaste do ser, quanto mais se afaste do real, menos será capaz de beleza, de verdade, de bondade — casos patentes de Descartes e Kant, por exemplo. E mais estará sujeita à tristeza, à indolência espiritual, à depressão psicológica, ao amargor ou, nos casos mais dramáticos, à pura e simples negação dos bens integrantes da vida humana em sua relação com o mundo exterior e, também, com a interioridade da alma que, indo às coisas, se volta reflexivamente sobre si mesma e descobre um extraordinário universo de beleza e de bem que culmina em Deus — como tão lindamente demonstrara Santo Agostinho ao exclamar o seguinte, partindo da premissa de que “no interior do homem habita a verdade”[2]: Sero te amavi, pulchritudo tam antiqua et tam nova (“Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova!”[3]).
Mas será de fato possível estimular a apreciação da beleza das coisas numa sociedade midiática regida pela propaganda — ao modo do aterrador 1984 de George Orwell? Será possível isto numa sociedade regida pela opinião da maioria teleguiada, tão característica do democratismo que, sob as mais variadas formas (não raro tendo o apoio do Estado opressor[4]), invade todas as esferas, da família às empresas, passando pela política e pela arte, isto para não falar da religião? Será possível isto numa sociedade pluralista que não possua um símbolo unitário que a oriente e conforme? Será possível isto, enfim, numa sociedade liberal?
A resposta é um veemente “não”. O liberalismo — que dá as cartas na aldeia global — gera e alimenta uma beleza totalmente avessa à excelência espiritual a que o homem é por natureza vocacionado. Gera e alimenta um tipo de humanidade sem acesso ao sublime e, portanto, contrária a Deus e à Igreja. Uma humanidade que recusa a beleza e nega o ser; contrária à ordem natural e alheia à sobrenatural. Para desgraça sua.
Liberalismo esse que, a propósito, há cinqüenta anos tem a hierarquia da Igreja (prevaricadora do seu múnus espiritual) como uma de suas maiores cúmplices e parceiras.
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1- De acordo com a gnosiologia tomista, a verdade tem como fonte os entes e se dá, formalmente, na inteligência, na medida em que esta apreende imaterialmente a forma das coisas tendo como insumo os seus aspectos materiais individuantes captados pelas potências sensitivas, os quais são abstraídos pelo intelecto que alcança, assim, o conceito universal.
2- “In interior homini habitat veritas”. Santo Agostinho, De Vera Religione, XXXIX, 72.
3- Santo Agostinho, Confessiones, X, 27, 38.
4- Como brilhantemente mostrou o Prof. Nougué no artigo intitulado “Breves palavras sobre o PT”, é preciso abandonar a anacrônica dicotomia direita-esquerda, capitalismo-comunismo, se se quer ter a clara noção do que seja realmente o mundo da política liberal (do ponto de vista católico) — o qual abarca e absorve em si os contrários e lhes dá livre curso, fomentando o caos e exacerbando os conflitos sociais. Neste contexto, apenas a título de exemplo, o fato de o Estado monstruosamente invadir cada vez mais a vida privada das pessoas nada tem a ver com uma suposta pauta da esquerda comunista internacional, pois o comunismo clássico se derruiu e se mesclou com o capitalismo e com a democracia liberal, se mesclou com o “é proibido proibir” do Maio de 68 francês, com o abortismo, o populismo e o gayzismo, tornou-se ecumenista (ele que era ateu), e, ao fim e ao cabo, a esquerda por ele gerada contribuiu para plasmar o mundo relativista “sem fé, nem lei, nem rei”, governado por um poder global e sustentado e por uma economia igualmente global, os quais necessitam do controle sobre as consciências para permanecer no poder indefinidamente. Uma esquerda que, nas pautas fundamentais, coincide com a direita, seja na defesa da democracia liberal, e conseqüente "liberdade" dos agentes econômicos (embora neste ponto caiba um texto inteiro para especificar o que se quer dizer), seja na defesa do “sagrado” direito à liberdade de expressão, do ecumenismo, do Estado laico (ou laicista, sendo a diferença entre ambos de grau, mas não de espécie), etc. Em suma, esquerda e direita hoje diferem apenas em alguns tópicos relativos à lei natural, ou em questões atinentes à gestão da política econômica. Na prática, representam aquilo que os escolásticos chamavam de coincidentia oppositorum, ou seja: são opostos que coincidem numa mesma política alheia a Deus e a Suas leis, política que, nos últimos 200 anos, gerou um mundo sem fé e, portanto, anticatólico por excelência. Coincidem nele e o retroalimentam na constante tensão entre as suas facções, as suas ideologias. A propósito, não custa lembrar que o católico não pode ser de esquerda nem de direita, por obediência ao Magistério solene que condenou tanto o liberalismo como o comunismo.
Contra Impugnantes
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