A supremacia da estupidez estética — e a derrota da política
Sidney Silveira
Em qualquer genuína fruição estética, dois fatores complementares estão implicados: o prazer subjetivo, provocado pelo contato com as formas belas, e certa noção — ainda que difusa, quase instintiva — dos elementos objetivos normatizadores da beleza: harmonia, ordem, proporção, integridade, clareza, funcionalidade, finalidade, entre outros. Em síntese, saber a beleza é saboreá-la em padrão elevado, visto que a intervenção da inteligência é fator distintivo essencial na apreciação das coisas belas.
Noutras palavras, esse tipo de fruição jamais é meramente sensitivo, pois não se trata de um agregado anárquico de dados empíricos captados pelos sentidos. A razão disto é de caráter gnosiológico: na experiência estética está sempre pressuposta a unificação formal dos dados sensíveis pela potência intelectiva, e se falta este elemento perde-se a sensação da beleza, pois como considerar belo o ininteligível? Há, na prática, uma ordenação qualitativa dos aspectos individuantes das coisas belas, e para o homem tal ordenação representa o selo cognitivo da beleza. Sem ele, teríamos a mesma reação dos sapos perante uma polifonia de Tomás de Victoria: coaxaríamos de tédio nos brejos e nos manguezais.
Qualquer sociedade politicamente saudável precisa de instâncias inalienáveis de beleza real. Não por outro motivo, educar para a beleza e para o bem foi a grande preocupação de Platão em quase todos os seus escritos políticos. Quem porventura leu com atenção as Leis, obra outonal do gênio grego, há de lembrar-se que o cargo político mais importante seria uma espécie de “ministério da educação”, com a incumbência de tentar evitar que as pessoas aprendessem a sentir prazer com as coisas degradantes, feias ou imorais, desde tenra idade.[1] Isto porque gozar contrariamente às leis, expressão teorética do bem comum da Pólis, seria ao mesmo tempo atentar contra as potências superiores da alma. E o ridículo, quando representado com intenções artísticas, acaba cedo ou tarde por enlamear a capacidade de apreciação.
O avesso enganoso da fruição estética é o que podemos chamar de estupidez estética. Trata-se do estado anímico no qual prevalece certa desarmonia entre entender e sentir. A sintomatologia é a seguinte: o homem odeia ou despreza as coisas nobres, boas e belas, e adora as bastardas, más, disformes. Esta verdadeira fobia à beleza não pode ser curada, se ultrapassar certos limites. É quando a substância espiritual experimenta fragorosa derrota para a frivolidade, e os instintos inferiores passam a prevalecer no olhar sobre as coisas. Ah, se o homem esteticamente estúpido pudesse contemplar a própria alma diante do espelho, morreria de susto ao ver tamanha feiúra, ou então teria o choque deflagrador de uma grandiosa reviravolta existencial. Infelizmente, tal desordem é invisível a olho nu — sobretudo para quem empacou na dificuldade de fazer o trânsito do sensível ao inteligível.
Outro achado extraordinário de Platão foi perceber que o fator de coesão de qualquer sociedade não está propriamente no equilíbrio entre governantes e governados, mas em certo equilíbrio entre o nobre e o vil. Poderíamos dizer: entre o belo e o feio, nas instâncias em que os possamos conceber: espiritual, psicológica, física, gnosiológica, etc. Em suma, quando prevalece um tipo de fealdade com pretensões de beleza, a sociedade é politicamente má. O dramático nesta situação é que a descida abismal não é percebida pela imensa maioria dos cidadãos — deformados por permanentes concessões estéticas e morais que, no decorrer do tempo, acabaram por desfazer o vínculo de amizade no tecido social e relegar os homens bem formados a uma posição adventícia, na qual perderam a voz nos espaços públicos.
Em tal estágio, a escalada da vulgaridade já não tem freio possível. Sim, pois se na apreciação do belo o subjetivo está para o objetivo assim como os sentidos estão para a inteligência — numa escala de ordenação ascendente em que o mais determina o padrão do menos —, a desintegração precisará chegar a um ponto crítico, para somente então as pessoas começarem a reagir de sua própria letargia política. E entenderem que entre Like a Virgin de Madonna e qualquer composição de Bach existe não apenas diferença de graus de beleza, mas sobretudo de capacidade de abrir os olhos e ver o mundo.
A regeneração política começa, pois, quando boa parte da população livra-se da estupidez estética.
Mas não sem cruciantes dores.
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1- Cfme. Platão, Leis, 817, b-d.
Contra Impugnantes
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