O bom feminismo o praticávamos nós, portugueses, na Índia de há quinhentos anos
O Sati era o ritual hindu pelo qual se imolava a esposa viúva por ocasião da morte do marido. Praticada na Índia desde antes do nascimento de Cristo, o espectáculo horrendo de viúvas devoradas pelas chamas constituiu, compreensivelmente, objecto de choque para numerosos viajantes que visitaram o subcontinente. Só recentemente, contudo, terá desaparecido por completo, datando a actual legislação indiana que o proíbe apenas de 1987. Motivo relevante para a sobrevivência da pavorosa superstição foi a tolerância, e até apoio, que lhe prestaram as autoridades britânicas nas áreas da Índia que lhe couberam. Com efeito, nem os funcionários da Companhia Inglesa das Índias Orientais parecem ter-se sentido particularmente incomodados com o espectáculo de mulheres inocentes oferecidas ás chamas, nem parecem elas ter encontrado motivo algum para limitar a prática até, imagine-se, a 1829. Pelo contrário, os funcionários da Company incentivaram-na abertamente, pois tornou-se seu hábito prestigiar os rituais com a sua presença. O historiador A.F. Salahuddin Ahmed, que estudou cuidadosamente o assunto, refere que a participação de dignitários da Companhia "not only seemed to accord an official sanction, but also increased its prestige value". O resultado foi grande crescimento na prática do Sati nos primeiros anos do século XIX, tendo o seu número crescido de 378 to 839 na província de Bengala entre 1815 e 1818. O bárbaro ritual só seria banido em 1829 e após persistente campanha contra ele por missionários anglicanos.
Na Índia portuguesa, muito diferentemente, o Sati fora banido logo em 1510, ou mais de trezentos anos antes. Procurando concretizar o seu projecto de conquista de Goa, Afonso de Albuquerque firmara uma aliança com a comunidade hindu da cidade e com o corsário Timoja, entretanto tornado vassalo do Rei de Portugal. Albuquerque prometera plena liberdade religiosa a muçulmanos e, particularmente, a hindus - estes últimos ter-se-ão decidido a apoiar os portugueses com reacção às repressões de que eram vítimas pelos conquistadores muçulmanos. Consumada a conquista da cidade, todavia, foi obrigado Albuquerque a reconsiderar a promessa ao assistir ao Sati. O ritual hindu horrorizou-o a ele e aos restantes portugueses, cuja sensibilidade cristã quedou chocada; Albuquerque decidiu-se a agir energicamente e, reiterando não pretender infringir desmedidamente os direitos dos hindus subjugados, proibiu por completo aquela prática obscena. Quantas mulheres foram salvas ao longo dos séculos por aquele assomo de consciência não pode ninguém saber, mas o que parece incontestável é que inumeráveis viúvas inocentes ficaram a dever a vida ao Governador da Índia e, sim, à obra civilizatória que Portugal produziu na Índia. Resta saber quando é, afinal, que a Albuquerque se reconhece o seu papel como eminente lutador pelos direitos das mulheres.
RPB
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