Crítica do sedevacantismo (I)
Carlos Nougué
Começa aqui a anunciada série crítica do sedevacantismo (logo começará, também, a sobre “Os regimes políticos segundo Santo Tomás de Aquino”). Ela se dividirá nas seguintes partes:
1) O artigo que agora se publica (“A tese sedevacantista derivada de A Figura deste Mundo, de Pacheco Salles”), já aparecido em outros lugares, mas revisto e retrabalhado para esta série;
2) Um artigo de d. Curzo Nitoglia sobre a Tese de Cassiciacum;
3) Algum artigo, por escolher, a respeito da corrente sedevacantista que se apoia na Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV;
4) Um artigo saído na revista Le Sel de la Terre, à guisa de conclusão;
5) E umas últimas palavras.
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A tese sedevacantista derivada de
A Figura deste Mundo, de Pacheco Salles
Carlos Nougué
Três são grosso modo as correntes sedevacantistas, e o são precisamente segundo as diversas premissas em que fundam sua conclusão. Aqui se estudará apenas a tese sedevacantista derivado da obra A Figura deste Mundo,[1] de Pacheco Salles.
Algumas palavras prévias.
Tentar-se-á descrever da forma mais sintética possível esta tese sedevacantista, sem subtrair-lhe, porém, nenhuma nota essencial; ao contrário, quanto mais fiel e estimulantemente se expuser, de modo que seja capaz de impressionar verdadeiramente o leitor, tanto melhor, porque assim mais precisão e robustez teológica terá de ter sua refutação.[2] É esse, aliás, o princípio mesmo da quaestio disputata tomista, que não deixa de ser a própria técnica de discussão aristotélica, mas altamente depurada, adequadamente simplificada e perfeitamente adaptada à filosofia e à sacra teologia.
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Primeira parte
A tese derivada do livro A Figura deste Mundo,
de Pacheco Salles
Sem dúvida, o sedevacantismo não brota do nada; segue-se de uma justa repugnância de fiéis católicos às novidades introduzidas a partir do Concílio Vaticano II, novidades que se chocam de modo evidente com o ensinado, ininterruptamente, pela totalidade do magistério anterior. Serão sólidas, porém, as premissas das três correntes do sedevacantismo? A razão de ser deste texto é precisamente esta: estudar as premissas da tese que se trata aqui. Por que somente suas premissas? Porque, como sua conclusão é, mutatis mutandis, a mesma das outras duas correntes sedevacantistas, concluir algo sobre ela supõe também o estudo das premissas destas últimas – o que só se fará em outro lugar.
Descreva-se pois agora, fidedignamente, o argumento central de Pacheco Salles em A Figura deste Mundo:
1) A fé teologal é um testemunho da verdade divina que Deus mesmo nos infunde na inteligência e no coração, para que possamos, infalivelmente, distinguir a verdade do erro ou da heresia, e a graça santificante é uma criação nova, um renascimento do homem mediante a participação da vida divina.
2) A fé teologal e a graça santificante são a essência mesma do Cristianismo, e delas depende tudo o mais. Não obstante, desde o fim da civilização cristã (leia-se: século XIII), ambas essas verdades se foram deslocando, nas almas católicas, de sua posição central, para ser pouco a pouco substituídas pelo culto do dever, pela prática dos mandamentos, pela observância escrupulosa dos preceitos morais e pela obediência cega às autoridades, como se tudo isso não dependesse precisamente da graça santificante e da fé teologal.
3) Passou-se progressivamente, com isso, a ver a graça como mero auxílio à boa conduta e ao combate aos vícios e paixões, e a fé como algo decorrente da obediência. Ora, tudo isso não só lembra mas tem estreito vínculo com a moral kantiana e seu imperativo categórico, diretamente decorrentes do protestantismo vitorioso em boa parte de uma Europa fraturada e minada pela heresia.
4) Pois bem, quanto à relação entre o fiel e a autoridade eclesiástica, também se deu uma inversão, consequente daquela: em vez da fé considerada como a razão formal da aceitação do ensino da Igreja, temos agora a autoridade do magistério eclesiástico considerada como a razão formal da fé. Radical inversão da realidade, pela qual se reduz a fé teologal a mera fé humana, que até pode ter a verdade revelada por objeto, mas evidentemente não é a fé sobrenatural — a única que salva.
5) Com efeito, segundo Santo Tomás de Aquino (cf. De Veritate, q. 14), um hábito, para tornar-se virtude, deve produzir sempre atos bons, porque toda e qualquer virtude é a perfeição de determinada potência. É o que se dá com a potência intelectiva, cujo objetivo é a verdade: qualquer ato seu será bom se manifestar a verdade, ou, em outras palavras, só tornarão virtuosa a inteligência humana os atos seus que alcançarem infalivelmente a verdade.
6) Mas como é possível existir, em nossa inteligência, a capacidade de conhecer com infalibilidade as verdades divinas, que sabidamente estão além da capacidade até de homens como Platão e Aristóteles? Sempre de acordo com o Doutor Comum, é a adesão interior ou íntima às verdades divinas, infundida sobrenaturalmente na inteligência, o que as torna discerníveis aos homens (e também aos anjos). Mais que isso, porém: sem tal adesão não se ordenaria o homem a seu fim sobrenatural. Por isso, pela ciência infusa, que é um dom de Deus, o cristão está provido de uma prerrogativa única: a inerrância em matéria de fé, no que diz respeito a tudo quanto necessita para a sua salvação.
7) Mas como, precisamente, é possível aos cristãos conhecer e confessar de modo infalível todos os artigos de fé e suas incontáveis sutilezas? Ora, os autênticos fiéis lutam por sua fé, razão por que Deus não os deixa cair em erro (“... si nos fecerimus quod in nobis est [...] Deus non deficiet nobis ab eo quod nobis est necessarium”, diz Santo Tomás). Qualquer cristão recebe de Deus um verdadeiro instinto da fé, que o faz evitar ou rejeitar os erros com respeito à verdade divina, ainda que se trate dos artigos e sutilezas da fé ensinados pela Igreja.
8) Isso porém tem uma pré-condição: o cristão pode professar todos esses artigos e suas sutilezas porque pode professar o primeiro, o supremo de tais artigos – Deus mesmo –, do qual decorrem e para o qual convergem todos os demais. Ora, as verdades em que o cristão deve crer, por ultrapassarem nossa capacidade natural de conhecimento, são-nos como que reveladas por Deus. É verdade que tais verdades nos são ordinariamente propostas pela pregação dos homens da Igreja, e que comumente tal pregação é a condição para a crença nelas. Mas dizer condição não quer dizer suficiência — ela não basta para que tenhamos fé, e isso porque com respeito já àquele primeiro e fundamental ato de fé (crer em Deus) ela não pode ter senão caráter de persuasão. Mais: não tem ela autoridade para tal, ainda que confirmada por milagres. O ato primordial de fé é posto, é infundido por Deus mesmo, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as Suas verdades.
9) Tudo isso, contudo, como já dito, foi sendo esquecido desde o século XIII. Deixando-se de lado a luz infusa que Deus acende na alma dos cristãos para guiá-los pela senda da verdade que salva, acabou-se por erigir, de modo tácito, o falso dogma da obediência incondicional ao Papa como obrigação primeira dos católicos. Já sem poderem suportar o governo absoluto do Deus invisível da pura fé, quiseram um soberano evidente e acessível aos sentidos, mudando-se o Papa de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor.
10) Foi desse modo que a luta pela fé foi absorvida e neutralizada numa obediência beata, cega e incondicional ao rei terreno. Tal obediência implica um axioma imoral: o de que a ordem do superior livra o subordinado de qualquer responsabilidade própria. Para comprová-lo, vejamos algo do que diz o Doutor Comum acerca da obediência (cf. Suma Teológica, II-II, q. 10). Antes de tudo, a própria obediência a Deus não é a maior das virtudes. Ela vem abaixo das virtudes teologais (fé, esperança e caridade), e vem abaixo delas porque, ainda se tratando de obediência a Deus, que implica o desapego dos bens criados e o desprezo da vontade própria, não é senão um meio para aquela adesão. Em verdade, as virtudes teologais sobrepujam todas as virtudes morais, porque concernem diretamente a Deus, enquanto estas concernem apenas ao meio mais adequado para nosso fim último, que é Deus mesmo. E, se é verdade que entre as virtudes morais a obediência ressalta, justamente por implicar o desprezo do maior dos bens (a vontade própria), isso em nada muda o fato de que a obediência é uma virtude subalterna, que depende da mesma subordinação às virtudes mais altas para que ela própria seja virtude. Faltando essa subordinação, deixará a obediência de ser virtude, e se mudará em vício.
11) Ora, ao fim desse processo nada mais natural que a heresia tomasse de assalto a própria Sé de Pedro, o que de fato sucedeu já com João XXIII, mas especialmente a partir do Concílio Vaticano II. Com efeito, com uma cristandade inerme, ou seja, destituída do sensus fidei, que é a razão formal da autoridade e pois da legitimidade da Sede de Pedro, esta não poderia senão acabar por ser ocupada pelo inimigo – e a partir desse momento estará propriamente vacante.[3]
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Como podemos ver pela exposição, o tipo de sedevacantismo que agora se estuda parte das duas seguintes premissas:
● A fé teologal é infundida por Deus mesmo na inteligência e no coração de cada fiel, para que ele possa, infalivelmente, distinguir a verdade do erro ou da heresia, ou seja: cada fiel é dotado pelo Espírito Santo de um infalível sensus fidei. Por seu lado, a pregação da hierarquia da Igreja não tem autoridade sobre os atos de fé dos fiéis, podendo ter apenas caráter de persuasão com relação a estes últimos.
● Mas desde o fim da civilização cristã (século XIII) a fé teologal (que junto com a graça santificante constitui a essência mesma do Cristianismo) foi-se deslocando nas almas católicas de sua posição central, para ser pouco a pouco substituída por um culto do dever de corte kantiano e por uma obediência cega à autoridade papal.
Donde a conclusão:
● Não é de estranhar, pois, que a heresia tenha ocupado a Sé de Pedro sem que a grande maioria dos católicos resistisse a ela, maioria que, muito pelo contrário, seguiu e segue obedecendo a papas heréticos. Estes, porém, justamente por heréticos, não são verdadeiros papas, e a Sede romana já desde algum tempo está vacante.
Refutação da tese
Notas prévias à refutação
¡ Como convém, começaremos por refutar a premissa maior da tese adversária, a do sensus fidei de que é dotado cada fiel. Diga-se desde já: a noção de sensus fidei sustentada por Pacheco Salles é uma perversão da verdadeira doutrina acerca dele, perversão que, mutatis mutantis, a forma de sedevacantismo que agora estudamos compartilha por um lado com o protestantismo e por outro com o modernismo. Já o veremos.
¡ A conclusão (a Sede está vacante), porém, como já se disse, só deve ser refutada ao final do exame de todas as formas de sedevacantismo, porque, com efeito, diz respeito a todas. Mas, enquanto tal não se faz, já estará ao menos demonstrada a fragilidade dos alicerces em que se funda a corrente sedevacantista estudada aqui.
¡ Após a refutação das duas premissas desta tese adversária, responder-se-á particularmente a cada item numerado de sua exposição.
I) Refutação da primeira ideia básica da tese adversária
Antes de tudo, atente bem o leitor para que uma aparente contradição da tese adversária não o é efetivamente. Com efeito, se Deus mesmo dá aos fiéis, a cada fiel, uma fé ou sensus fidei infalível e por isso mesmo capaz de distinguir infalivelmente a verdade do erro ou da heresia, como é possível então que a própria fé se tenha deslocado progressivamente na alma dos fiéis a ponto de ser pouco a pouco substituída por uma noção de dever de corte kantiano e por uma obediência tão cega, que os torna incapazes de resistir até a papas heréticos? A isso, lembremo-nos, responde o adversário da seguinte maneira: “Os autênticos fiéis lutam por sua fé, razão por que Deus não os deixa cair em erro (‘... si nos fecerimus quod in nobis est [...] Deus non deficiet nobis ab eo quod nobis est necessarium’, diz Santo Tomás). Mas, deixando de lado a luz infusa que Deus acende na alma dos cristãos para guiá-los pela senda da verdade que salva, a maioria dos católicos acabou por erigir, de modo tácito, o falso dogma da obediência incondicional ao Papa como sua obrigação primeira. Já sem poder suportar o governo absoluto do Deus invisível da pura fé, essa maioria quis um soberano evidente e acessível aos sentidos, mudando-se o Papa de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor”. Para saber, porém, se de algum modo a tese do adversário procede, é preciso saber não só se a fé dada por Deus a cada fiel é efetivamente infalível, e não só se efetivamente a maioria dos católicos a rejeitou e por isso deixou de ser autenticamente católica, mas também se cada um dos fiéis pode efetivamente ter certeza de que o que julga ser fé sobrenatural dada por Deus a ele o é de fato. Sim, porque não é verdade que cada protestante sincero crê sinceramente que a sua fé individual e interior é verdadeira fé sobrenatural infusa?
Em verdade, como já antecipado, estamos diante de uma das formas de perversão da correta doutrina do sensus fidei. Com efeito, na Suma Teológica, II-II, q. 1, a.3, pergunta-se Santo Tomás se é possível haver ato de fé de um objeto falso, como se daria se um menino fizesse um ato de fé de uma proposição falsa induzido, por exemplo, por um sacerdote formado num mau seminário. Parece que sim, porque em princípio o menino está predisposto a crer em tudo quanto lhe diga o sacerdote enquanto representante da Igreja, e porque não tem capacidade para distinguir o verdadeiro do falso em tudo quanto lhe diga o sacerdote. Mas não é assim, porque o objeto formal e próprio da virtude sobrenatural da fé é a verdade divinamente revelada, e em nada divinamente revelado pode haver nem sombra de erro. “Assim como a vista”, diz o Padre Álvaro Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire, “não pode ver senão a cor por meio da luz; assim como a inteligência não pode entender a verdade senão em razão de sua evidência; assim tampouco a fé sobrenatural pode crer senão na verdade formalmente revelada.” Ora, assim como aquele mesmo menino também poderia ser induzido por um professor de ciências a afirmar como verdadeira uma demonstração falaz, e assim como tal afirmação não seria induzida pela evidência do raciocínio (porque o menino por ser criança seria incapaz de tal) e não seria, portanto, um ato da virtude intelectual da ciência, assim também, analogamente, o menino pode assentir à falsidade proposta pelo sacerdote, e tal assentimento será, sim, um ato de fé, mas não de fé sobrenatural, que só se pode dar com respeito a verdades reveladas por Deus mesmo. Será um ato de fé meramente humano.
Até aqui, portanto, as palavras do Aquinate parecem dar inteira razão ao nosso sedevacantista, porque, com efeito, se lê na exposição da tese adversária feita na seção anterior que, “segundo Santo Tomás de Aquino (cf. De Veritate, q. 14), um hábito, para tornar-se virtude, deve produzir sempre atos bons, porque toda e qualquer virtude é a perfeição de determinada potência. É o que se dá com a potência intelectiva, cujo objetivo é a verdade: qualquer ato seu será bom se manifestar a verdade, ou, em outras palavras, só tornarão virtuosa a inteligência humana os atos seus que alcançarem infalivelmente a verdade”. Sucede todavia que, como sugere o próprio exemplo do menino com o sacerdote, nesta vida o cristão nunca poderá discernir com certeza se um ato seu é natural ou sobrenatural, e isso porque, como lembra ainda o Padre Calderón (ibid.), “o único hábito intelectual capaz de conhecer o sobrenatural por essência é o lumen gloriae dos bem-aventurados”. Sim, porque para cada ato sobrenatural de uma virtude infusa pode dar-se um ato semelhante produzido por uma simples disposição natural, e, conquanto se possa, se se for dotado de boa capacidade de discernimento, “distinguir com certa probabilidade os atos que vêm da graça, não é possível fazê-lo com toda a certeza” (idem; grifo nosso). Para comprová-lo, leia-se De Veritate, q. 10, a.10, onde o Doutor Comum se pergunta se alguém pode saber com certeza se tem a virtude sobrenatural infusa da caridade, e, como propõe ainda o Padre Calderón, estenda-se o que se responde ali a todas as demais virtudes infusas: com efeito, ninguém pode ter certeza de que tem nenhuma delas (ainda que, se for dotado daquela boa capacidade de discernimento, possa até distinguir sua presença com certo grau de probabilidade).
Se assim é, contudo, como se pode dizer que o católico é obrigado a fazer firme profissão externa de sua fé? Sim, porque parece absurda tal exigência se ele não pode discernir com certeza aquilo em que internamente crê, ou seja, se se trata de assentimento sobrenatural ou meramente natural. De fato, uma criança nascida “no protestantismo pode ter fé divina por graça de Deus e crer sobrenaturalmente em muitas verdades reveladas, mas nunca poderia moralmente assegurar a ninguém que aquilo em que crê é verdade de fé” (Padre Calderón, ibid.). Mas se assim é, repita-se, como então pode o fiel fazer uma profissão de fé externa certa? Ora, com um critério externo também certo, ou seja, sem nenhuma possibilidade de erro: o magistério infalível da Igreja.
Assim, ao contrário do que diz o nosso sedevacantista de primeiro tipo, não é um suposto “instinto da fé” ou sensus fidei dado por Deus mesmo a cada fiel o que o faz professar de modo infalível as verdades divinas.
Mas, então, há de perguntar o nosso sedevacantista, de nada vale ou de nada serve a virtude infusa da fé? É claro que vale: a fé, sobretudo uma fé robusta, acompanhada de certos dons do Espírito Santo (o da sabedoria, o do intelecto e o da ciência), é capaz de compreender clara e firmemente muitas verdades. Imagine-se a robustez da fé de que Deus dotou um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e entender-se-ão em parte os fulgores de inteligência dos mistérios divinos que lhes saíam da mente como em cascata. Mas o católico, incluindo Santo Agostinho e Santo Tomás, só pode ter certeza daquilo que discerne interiormente pela fé “se o confirmar”, como diz o Padre Calderón (ibid.), “e no grau em que o confirmar o magistério da Igreja”.
Mas não é verdade de fé que o sensus fidei é infalível? Sim, o é, mas não como entende essa noção o nosso sedevacantista. Antes de tudo, ao contrário do que afirmam tanto os protestantes como os sedevacantistas, o sensus fidei não é um “instinto individual da fé dado por Deus a cada fiel”. “Sensus fidei do povo cristão” é outra maneira de dizer “consensus fidelium in doctrinam fidei”, e refere-se ao fato de que a “universitas fidelium in credendo falli nequit”, ou seja, quando a universalidade ou totalidade “moral” dos fiéis católicos professa uma verdade como sendo de fé, não pode enganar-se. Isto, sim, “é critério infalível da divina Tradição (cf. a Tese XII do Cardeal Franzelin, em Tractatus de divina Traditione, edit. 3ª, Romae 1882). Isto é verdade de fé católica” (Padre Calderón, ibid.).
Ao contrário porém do que, como veremos, diz o modernismo, “o sujeito deste ato (‘id quod’ agit) é a Igreja universal, sem distinção entre clérigos e leigos; e o princípio pelo qual se obra (‘id quo’ agitur) é a fé sobrenatural. Mas a propriedade de infalibilidade deste ato não vem exclusiva, nem principal, nem formalmente da fé do povo cristão, e sim do magistério da Igreja, cujo sujeito não é a Igreja universal, mas o Papa e os bispos, e cujo princípio não é a fé, mas o carisma da infalível verdade. Daí que a infalibilidade in credendo da Igreja universal se reduza própria e estritamente à infalibilidade in docendo da Hierarquia eclesiástica” (Padre Calderón, ibid.), desde que, obviamente, a Hierarquia não renuncie a esta infalibilidade. Pois bem, como diz ainda o Padre Calderón, embora ainda não se possa dizer que esta tese seja dogma de fé, “ela entretanto é doutrina católica certa” (idem).[4]
Aprofundemos a questão, para que não reste nenhuma dúvida a seu respeito. De fato, como dizia Santo Tomás (Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 3: “Utrum fidei possit subesse falsum”), a virtude sobrenatural da fé, infundida por Deus mesmo na alma de cada fiel, é infalível em seu ato interno. Sucede porém que este ato não serve como critério infalível da Tradição, porque, nesta vida, ele é essencialmente indiscernível de qualquer disposição natural que se lhe assemelhe. Para o povo fiel saber com toda a certeza em que deve crer, as verdades de fé têm de ser propostas por um mestre infalível em seu ato externo, ou seja, por esse mestre enquanto instrumento fidelíssimo de Deus. Foram mestres assim “os profetas no Antigo Testamento, e o próprio Filho de Deus feito homem no Novo (Heb., I, 1), o Qual prolonga seu magistério por meio do Sacerdócio hierárquico” (Padre Calderón, ibid.).
Diz contudo o nosso sedevacantista que “as verdades em que o cristão deve crer, por ultrapassarem nossa capacidade natural de conhecimento, são-nos como que reveladas por Deus”. Ora, se é verdade que esse “como que” é demasiado ambíguo para permitir afirmar com certeza o que quer dizer seu autor, não se pode porém evitar ver na frase algo que tangencia perigosamente um “angelismo” à Descartes ou à Maritain, ou seja, o atribuir aos homens coisas que não convêm senão aos anjos. Naturalmente, de potentia absoluta “Deus poderia ter proposto as verdades de fé [aos homens] por uma locução interior tal, que fosse por si mesma critério evidentíssimo e infalível do caráter revelado de tal verdade, como se deu de fato com os anjos” (Padre Calderón, ibid.). Com efeito, Deus formou no intelecto dos anjos, sobrenaturalmente e ao modo de revelação interior, certas espécies mediante as quais eles pudessem crer em diversas verdades divinas. Atente-se, porém, para duas coisas. Primeira, nem a própria natureza angélica é capaz de “conhecer a essência sobrenatural do ato de fé; se cada anjo sabia com toda a certeza aquilo em que objetivamente devia crer, é porque a autoridade imediata de Deus” (Padre Calderón, ibid.) procedeu àquela como revelação interior. Segundo, pelo fato de a natureza do homem ser política ou social, e sua inteligência ser discursiva, e não intuitiva, não lhe convinha tal modo de revelação: como dizia Santo Tomás, em virtude de a natureza não ser senão “a razão de certa arte divina, interior às coisas mesmas, pela qual elas próprias se movem para determinado fim”,[5] ou seja, em virtude de Deus mesmo ter dado a cada ente, seria ocioso dizer, a natureza que lhe é própria, Ele não a violenta. Ora, é da natureza própria do homem chegar à verdade mediante “o ensinamento do magistério oral de suas autoridades naturais” (idem), e não é próprio do intelecto humano intuir nenhumas verdades, incluídas, muito especialmente, as verdades divinas. “Daí que Deus, que tudo faz com ordem, nos tenha feito chegar sua revelação não por locução imediata interior, mas por mediação da palavra de mestres dotados de sua mesma divina autoridade” (idem).
Por isso, se de fato o fiel é levado a assentir ao magistério da Igreja pela virtude infusa e interna da fé, a certeza da profissão de fé, porém, “depende formalmente dos critérios externos pelos quais pode reconhecer sua proposição por parte da Hierarquia eclesiástica. Se o fiel julga entender tal ou qual verdade na meditação dos mistérios cristãos, não pode estar certo do que crê senão na medida em que lho assegure o magistério” (Padre Calderón, ibid.); e, ao contrário do que afirmam os protestantes e do que como que afirma o nosso sedevacantista de primeiro tipo, o fiel “não poderia estar certo nem sequer do que dizem os Evangelhos se o magistério não lhe tivesse confirmado que são inspirados” (idem).
Já podemos, pois, começar a concluir esta parte. Para que se dê a infalibilidade do consensus fidelium in doctrinam fidei, ou seja, do sensus fidei, intervêm, por um lado, a virtude infusa da fé e, por outro, a proposição do magistério, e é em razão desses dois elementos que a universalidade “moral” dos fiéis é dócil às verdades de fé. Mas é o magistério da Igreja quem propõe as verdades em que se há de crer como de fé, e o faz com o penhor de sua autoridade infalível. Ou seja, o que se disse de cada fiel vale também para a universalidade dos fiéis: ela “não pode crer senão no que o magistério lhe propõe e no grau de certeza com que lhe propõe; com esta diferença, porém: a docilidade da fé de um único fiel pode falhar, mas não a da Igreja universal” (Padre Calderón, ibid.).
É por esse motivo que a infalibilidade da Igreja in credendo, ou seja, a do conjunto dos fiéis enquanto crentes (sem distinção entre clérigos e leigos), se reduz à infalibilidade da Igreja in docendo, ou seja, a da docência da Hierarquia. (Cf. Franzelin, Tractatus de divina Traditione, op. cit., p. 114, nota 1: “Como o magistério, dotado deste carisma da infalibilidade, por sua ação ministerial, custodia, propõe, explica, protege a doutrina revelada, e conserva todos os fiéis na unidade da fé, por isso a infalibilidade ‘in docendo’ costuma ser dita ativa, e tem como finalidade a indefectibilidade ‘in credendo’, que pela ‘obediência da fé’ é a infalibilidade passiva de todo o corpo da Igreja”. Cf. também H. Mazzella, Praelectiones scholastico-dogmaticae, ed. 6ª, Torino 1937, vol. I, p. 450: “A infalibilidade da Igreja in credendo é efeito da infalibilidade in docendo, que portanto é seu princípio: a infalibilidade ativa dos Pastores reclama necessariamente a infalibilidade passiva dos fiéis”. Apud P. Calderón, ibid.) Em outras palavras, a infalibilidade da Igreja in credendo reduz-se à infalibilidade da Igreja in docendo porque esta é a causa daquela: “a proposição do magistério, que goza com exclusividade do carisma da infalível verdade, é ao modo de causa eficiente e formal da profissão de fé; enquanto a virtude da fé da Igreja universal não é de per si propriamente infalível em seu ato externo, mas indefectível na santidade de sua docilidade ao magistério. Há portanto um único princípio ou carisma de infalibilidade com respeito à profissão de fé: o concedido por Nosso Senhor ao sucessor de Pedro, sozinho ou com os bispos” (P. Calderón, ibid.).
Prova-se suficientemente com isso a falsidade de afirmar, como o faz o nosso sedevacantista, que a pregação da Hierarquia “não pode ter senão caráter de persuasão. Mais: ela não tem autoridade com relação aos atos de fé, ainda que confirmada por milagres. O ato de fé primordial (o crer em Deus) é infundido por Deus mesmo na alma de cada fiel, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as Suas verdades”. (Deve-se, ademais, completar a afirmação de que o “crer em Deus” seja um ato de fé infundido por Ele mesmo com a conclusão racional e infalivelmente estabelecida [cf. São Paulo e o Concílio Vaticano I] de que o intelecto humano é capaz de por suas próprias luzes conhecer a Deus a posteriori, ou seja, pelos efeitos, pelas coisas criadas por Ele.) Mas, insistiria ainda o autor da tese adversária, por que então os teólogos falam da infalibilidade do sensus fidei como algo distinto do magistério no que tange ao julgamento do pertencente à Tradição? Não bastaria, consoante o que se viu, falar apenas da proposição do magistério? “Não”, responde ainda o Padre Calderón (ibid.), “porque muitas vezes as causas são invisíveis e só podemos julgar de sua existência através de seus efeitos. Há muitas verdades propostas infalivelmente pelo magistério ordinário universal de modo oral cuja existência só pode ser conhecida pela profissão de fé da Igreja universal. Do que, sim, devemos estar certos é que a universalidade dos fiéis nunca teria feito profissão de fé com respeito a alguma verdade se esta não tivesse sido proposta como tal pelo magistério da Igreja, porque [a universalidade dos fiéis] não tem outro critério para estar certa do que foi revelado por Deus”. Em outras palavras, o magistério infalível da Igreja é a regra próxima da fé (regula fidei quoad nos proxima), enquanto as Escrituras e a Tradição são a regra remota da fé (regula fidei quoad nos remota), da qual aquela, por sua própria natureza, não pode afastar-se.
Resta-nos mostrar aqui, porém, ainda que brevemente, que esta forma de sedevacantismo de certo modo partilha tal perversão com o protestantismo, por um lado, e com o modernismo, por outro. Feito isso, passaremos na próxima seção do estudo a refutar a segunda falsidade da tese adversária: a reconstrução ideal da história que ela opera.
Pois bem, o principal traço da heresia protestante é o atribuir a cada crente (protestante, claro) um sensus fidei infalível, tal como, mutatis mutandis, o faz o nosso sedevacantista de primeiro tipo. Mas como se livra o protestantismo do intolerável papel de magister atribuído ao magistério da Igreja? Por dois princípios, quais sejam: a) o da “sola scriptura”, com o qual se “congela o Traditum revelado nas Sagradas Escrituras” (P. Calderón, ibid.) e se transforma Cristo num Deus de papel; b) o do “livre exame”, pelo qual se atribui o carisma da infalível verdade à fé individual. E é este, em verdade, o principal desses dois princípios, porque é graças a ele que cada fiel individual saberia o que é de fato revelado e o que não o é, o que decorre e o que não decorre do revelado, etc. Naturalmente, este princípio, essencialmente liberal, entra necessariamente em contradição com o imobilismo do primeiro, e está na origem do caráter entrópico do protestantismo, ou seja, de seu fracionamento ao infinito em seitas que vão do luteranismo “ortodoxo” até a Igreja do Cuspe de Cristo... E como não seria assim se, como diz o Padre Calderón (ibid.), “a doutrina que possa seguir-se [da meditação pessoal] das Escrituras, conquanto seja certamente infalível pela garantida inspiração do Espírito Santo a cada crente, não tem por que ser imposta ao vizinho: toda teologia é pessoal e para proveito próprio, [e] que ninguém pretenda então constituir-se mestre dos demais”...?
Naturalmente, não estamos dizendo que a forma de sedevacantismo que nos ocupa em primeiro lugar sustente o princípio protestante do livre exame. O que, sim, dizemos é que: a) sustenta um dos pressupostos desse princípio, qual seja, a infalibilidade de um “instinto da fé” ou sensus fidei individual “pela garantida inspiração do Espírito Santo a cada crente” (crente “autêntico”, adjetiva o nosso sedevacantista); b) pressupõe que o Espírito Santo inspira ao conjunto dos crentes autênticos a mesma coisa, razão por que em face do sensus fidei de cada fiel autêntico ou da unidade do sensus fidei do conjunto dos crentes autênticos o magistério da Igreja não tem senão caráter de persuasão, com o que, tal qual o protestantismo, conquanto mutatis mutantis, este tipo de sedevacantismo acaba também por resvalar pela ladeira do liberalismo e sua ojeriza ao caráter magisterial da autoridade.
Por outro lado, todavia, esta forma de sedevacantismo partilha, sempre mutatis mutandis, a perversão da noção de sensus fidei própria do modernismo. Com efeito, como o protestante, o modernista (que é um católico liberal de certo tipo) abomina o caráter magisterial da autoridade, mas tampouco quer enveredar pelo caminho do fracionamento protestante. Assim, se “ao comer do fruto oferecido pela serpente kantiana” (P. Calderón, ibid.) ele “descobriu” que as fórmulas conceptuais escolásticas herdadas do passado não serviam para expressar o mistério divino e concluiu por isso que devia aderir ao livre exame, concluiu também, todavia, que para evitar um fracionamento ao modo protestante o livre exame não devia ser individual ou individualista, mas comunitário.
Em função desse redirecionamento do princípio protestante, passou-se a crer que a revelação, expressa especialmente, sim, pelas Sagradas Escrituras, foi porém dada por Deus imediatamente não a cada fiel, mas tampouco exclusivamente à Hierarquia eclesiástica, e sim ao conjunto da Igreja, sem distinção entre fiéis e clérigos, mas tampouco sem hierarquização entre eles.
Por isso a verdadeira autoridade em matéria de fé, a sua regra próxima, seria na verdade o resultado do diálogo comunitário de todo o povo de Deus em seu livre exame coletivo das Sagradas Escrituras, donde a fatuidade ou mutabilidade das formulações não só escolásticas, mas também dogmáticas: a Hierarquia eclesiástica, incluído naturalmente o Papa, não deveria exercer senão o papel de mediador desse diálogo. Sucede porém que, como, apesar de “assistido infalivelmente pelo Espírito Santo”, o livre e dialogado exame comunitário do modernismo não pode terminar nunca, por tropeçar nas insuperáveis e volúveis contradições entre os multitudinários participantes de tal concílio permanente, aos dogmas outrora decretados ex cathedra pelos Sumos Pontífices nada os vem substituir, nenhuma decisão, nenhuma orientação além da linha geral de seguir dialogando per omnia saecula saeculorum.
Pois bem, não dizemos que o nosso sedevacantista de primeiro tipo defenda a correção modernista do sensus fidei protestante. Mas dizemos, sim, que: a) partilha com ela, mutatis mutandis, a suposição da assistência garantida do Espírito Santo ao conjunto dos féis (fiéis “autênticos”, adjetiva ele) sem marcada hierarquização entre crentes e hierarquia eclesiástica; b) por pressupor que o Espírito Santo inspira ao conjunto dos fiéis autênticos a mesma coisa, considera que o magistério da Igreja tem, no máximo, caráter de persuasão, razão por que não lhe seria inconveniente o papel de mediador – não, é claro, de um diálogo com as características do diálogo modernista, mas sim, digamos, de possíveis arestas ou mal-entendidos entre os diversos “assistidos infalivelmente pelo Espírito Santo”; c) ainda mutatis mutandis, partilha com o modernismo, como com o protestantismo, a ojeriza ao caráter magisterial da autoridade.
II) Refutação da segunda ideia básica da tese adversária
Como se disse, a premissa menor da tese de Pacheco Salles em A Figura deste Mundo constitui propriamente a “reconstrução ideal da história” que nos ocupa neste estudo. Segundo esta, lembremo-nos, desde o fim da civilização cristã (século XIII) a fé teologal se foi deslocando nas almas católicas de sua posição central, para ser pouco a pouco substituída por um culto do dever de corte kantiano e por uma obediência cega à autoridade papal. Deixando-se de lado, sempre segundo a tese adversária, a luz infusa que Deus acende na alma dos cristãos para guiá-los pela senda da verdade que salva, acabou-se por erigir, de modo tácito, o falso dogma da obediência incondicional ao Papa como obrigação primeira dos católicos. Já sem poderem suportar o governo absoluto do Deus invisível da pura fé, quiseram um soberano evidente e acessível aos sentidos, mudando-se o Papa de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor.
Para refutar esta ideia, deve-se dizer que ela inverte o que de fato se deu historicamente. Sim, porque o que em essência acabou por desembocar no Concílio Vaticano II e na apostasia quase geral da Cristandade não foi uma progressiva substituição da fé e da vida da graça por uma obediência cega, incondicional, de corte kantiano, ao Papa, por já não se suportar o governo invisível de Deus; foi antes, pela perda progressiva da fé, uma paulatina insubmissão dos estados e dos homens ao Vigário de Cristo. Ao contrário, pois, do que diz a tese de Pacheco Salles, o que progressivamente se tornou insuportável para os homens foi a devida obediência ao representante visível de Deus; e tal progressiva insubmissão, resultante da revolta da carne e do amor-próprio contra o espiritual, é consequência direta da perda da fé, porque, como vimos na refutação à primeira ideia central deste tipo de sedevacantismo, o próprio magistério do Papa é que é a regra próxima da fé. Vejamos, porém, o desenrolar histórico desse processo, para que assim se patenteie inequivocamente a fragilidade do argumento adversário.
Como diz o Padre Calderón em El Reino de Dios en el Concilio Vaticano II, Jesus Cristo, “ao estabelecer sua Igreja na terra, não arrebata os cetros temporais, senão que, se se submetem a Ela, lhes comunica verdadeira eficácia”. Pois é exatamente no terreno das relações entre os poderes temporais e o poder espiritual que, a partir de Cristo — cuja Vida, Paixão, Morte na Cruz e Ressurreição constituíram a consumação dos tempos —, se traçam os desígnios de Deus para o percurso histórico da Igreja militante. E este percurso começa com efusão de sangue: por três séculos consecutivos, o martírio dos cristãos obra pela purificação e conversão do Império Romano.
Não por nada São Pedro, auxiliado por São Paulo, vai enraizar a Igreja no solo da Cidade “Eterna”. Já lhes viera o Espírito Santo em Pentecostes, e já lhes tinha falado o próprio Cristo ressurrecto; e eles por certo estavam divinamente orientados para colocar a Pedra no centro daquela civilização que a mesma Providência Divina preparara para ser batizada e dar à luz a Cristandade. E, com efeito, no começo do século IV Constantino se rende ao Vigário de Cristo. Sucede, todavia, que o Império Romano já agonizava, por seus mesmos defeitos originais e sua caducidade, razão por que o Papado herdaria a própria jurisdição temporal imperial: como diz ainda o Padre Calderón, “suprindo os ofícios civis ante o povo romano”, os Papas acabaram por “dobrar sua coroa de Imperador espiritual do Orbe com a de Imperador temporal da Urbe” (ibid.). É este o primeiro momento da Cristandade.
Com a queda do Império pelas mãos dos bárbaros do Norte, e após o reconhecimento por Carlos Magno, no século XVIII, do poder temporal do Papa, inicia-se o segundo momento da Cristandade, o medieval, que mais propriamente se estende da Espanha visigótica de São Isidoro de Sevilha [século VIII] à afronta de Filipe, o Belo, a Bonifácio VIII [século XIII], mas alcança, na Península Ibérica e na América, os séculos XVI/XVII — é a Christianitas minor dos reis católicos Isabel e Fernando, Carlos V e Filipe II. Pois é sobretudo a este segundo momento que se refere o Papa Leão XIII ao dizer, na Encíclica Immortale Dei, que “tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os estados. Naquela época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil”. É o momento em que se traduz plenamente na realidade a doutrina da subordinação essencial do poder político ao poder eclesiástico, longamente desenvolvida por Santo Hilário, São Gregório Nazianzeno, São João Crisóstomo, Santo Ambrósio e, especialmente, Santo Agostinho e São Gregório Magno, e consolidada pelo próprio magistério romano e por teólogos como São Bernardo e Santo Tomás de Aquino.
Muito mais que serem uma espécie de “apoio” ou “respaldo” para a Igreja, os reinos medievais eram instituídos por Ela. Explicita-o a tese teológica dos “dois gládios”. “Há dois poderes”, escrevia já o Papa Gelásio I (492-496) em carta ao Imperador, “pelos quais é regido o mundo: a sagrada autoridade pontifícia e o poder régio. Deles, o primeiro é muito mais importante, pois os homens, incluindo os reis, prestarão contas perante o Tribunal Divino. Pois saiba, clemente filho nosso, que embora ocupes o lugar da mais alta dignidade entre os homens, em tudo deves submeter-te fielmente àqueles que têm a seu cargo as coisas divinas e defendê-los, tendo em vista a tua salvação.”[6]
“As palavras do Evangelho”, escreverá o Papa Bonifácio VIII na Bula Unam Sanctam, de 18/11/1302, “nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, ambas em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a Igreja, enquanto a primeira deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do sacerdote; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do sacerdote. Uma espada deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa [essencialmente, como se acaba de ver] à autoridade espiritual.”
É neste segundo momento da trajetória da Igreja militante que, sob a tutela de sua Hierarquia, os antigos povos bárbaros, agora cristãos, erguem as ordens políticas mais sãs e mais florescentes que já houve na terra. A subordinação dos poderes civis ao poder eclesiástico foi-se “plasmando em ritos e costumes, muito especialmente a coroação eclesiástica de imperadores e reis” (Padre Calderón, ibid.), o que permitiu, por exemplo, que um Papa como São Gregório VII (1073-1085) pudesse depor, além de excomungar, o tão poderoso imperador Henrique IV: “Bem-aventurado Pedro, príncipe dos apóstolos, creio que por ti me veio de Deus o poder ligar e desligar no céu e na terra. Assim, confiando nesta fé, da parte de Deus todo-poderoso e em virtude de teu poder e de tua autoridade, tiro ao Rei Henrique o governo de todo o reino da Alemanha e da Itália; desligo todos os cristãos dos vínculos do juramento que lhe fizeram ou que lhe farão, e proíbo que qualquer o reconheça por rei”.[7] É neste segundo momento que aparecem ordenações como as Siete Partidas (circa 1270) do Rei Afonso X, segundo as quais “todas as coisas pertencem à Igreja Católica”;[8] ou como as Ordenações Del-Rei Dom Duarte (circa 1436), pelas quais se “manda que as leis e constituições de Portugal não sejam contrárias aos cânones e direitos da Santa Igreja”.[9]
E, mais ainda que serem instituídos pela Igreja, os reinos cristãos faziam parte da Igreja. “Assim como Deus, criador de todas as cosas”, explica-o Inocêncio III, “pôs dois grandes astros no céu, o astro maior para presidir o dia, e o astro menor para presidir a noite, assim também, no firmamento da Igreja universal, que é chamada pelo nome de céu, constituiu duas grandes dignidades: a maior, para que, como durante os dias, presida as almas, e a menor, para que, como durante as noites, presida os corpos, e estas são a autoridade pontifícia e a autoridade real. Ademais, assim como a lua recebe sua luz do sol e em verdade é menor que ele tanto em quantidade como em qualidade, e também quanto à sua situação e ao seu efeito, assim também o poder real recebe da autoridade pontifícia o esplendor de sua dignidade; quanto mais se detém a olhá-la, mais se embeleza com a luz maior, e, quanto mais se afasta de seu olhar, mais perde seu esplendor”.[10]
E efetivamente, à medida que “os reis enfraqueçam o domínio do poder eclesiástico sobre a ordem política, vão enfraquecer seu próprio poder e autoridade: se Cristo não reina sobre eles, eles não reinam sobre os povos” (Padre Calderón, ibid.), processo que culminará em revoluções como a francesa.
E o fato é que, logo após o ápice do século XIII, logo após a consolidação das Universidades regidas pela Sagrada Teologia, logo após a construção das esguias igrejas góticas, logo após o erguimento dessa catedral que é a obra de Santo Tomás de Aquino, a Cristandade começa a acabar, com o fim da perfeita ordenação da jurisdição temporal à espiritual. A querela entre o Papa Bonifácio VIII e Felipe, o Belo, e a já referida afronta deste àquele prenunciam a decadência da Cidade cristã. Os reis e demais governantes progressivamente já não quererão estar sob o cetro de Jesus Cristo, deixando de aceitar o que a Verdade atesta, a saber, que a potestade espiritual tem não só de instituir a temporal, mas, por isso mesmo, deve “julgá-la se não for boa […]. Logo, se a potestade terrena se desviar, será julgada pela potestade espiritual [...]. Pois bem, submeter-se ao Romano Pontífice, Nós o declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos como de toda a necessidade para a salvação de qualquer humana criatura” (Bula Unam Sanctam). Começa, assim, com a negação desta necessidade, “o ocaso da fé no Ocidente” (Padre Calderón, ibid.), e o mundo que era composto de reinos vassalos de Cristo Rei sob a paz de seu Vigário se transformará, entre o século XIV e o XVIII, no mundo das monarquias absolutas e dos “sóis que nunca se põem”. É a antessala das revoluções e suas guilhotinas, fuzilamentos e massacres, das quais brotará o mundo francamente anticatólico que chafurda no pecado à espera do Anticristo.
Múltiplos e complexos são, sim, os fatores que determinaram aquela rebelião dos reis, rebelião que, como já dito, se pode reduzir à da carne e do amor-próprio contra a primazia do espírito e da glória devida a Deus. Entre tais fatores, certamente está a influência de homens como o franciscano Duns Scott (1270-1308) e sua hipertrofia da vontade; Dante (1265-1321) e seus dois fins últimos do homem, um espiritual e outro temporal; o também franciscano Guilherme de Ockham (1300-1349) e sua navalha, que em verdade também corta não só os universais, mas o próprio império espiritual da Igreja sobre os poderes políticos; o dominicano Francisco de Vitória (1483-1512) e seu direito natural independente do direito positivo divino; Maquiavel (1469-1527) especialmente, com sua transformação da ética em assunto de foro íntimo e da política em mera questão de manutenção do poder a qualquer custo; o jesuíta Francisco de Suárez (1548-1617) e sua redução do político a uma pretensa soberania popular; etc., etc., etc. Mas sem sombra de dúvida, como também já dito, o principal dos fatores que determinaram aquele processo foi a diminuição da fé. “O poder político”, como escreve o Padre Calderón (ibid.), “necessita subordinar-se essencialmente ao eclesiástico para poder cumprir sua missão; mas a potestade da Igreja sobre a ordem temporal é de natureza espiritual, e, portanto, a eficácia de seu poder depende da viveza da fé. A Igreja não tem exército e polícia para obrigar os recalcitrantes.” Tal relação de subordinação se pode comparar, analogicamente, à relação entre a alma e o corpo: com efeito, na mesma medida em que diminui a fé, perde o poder eclesiástico — a alma — domínio sobre o corpo social, “e são cada vez mais fracos os remédios que pode aplicar e cada vez mais violentos os ataques que há de sofrer” (idem). Em razão desse processo, os Papas já não terão efetivas condições de instituir e destituir os governantes, porque os reinos e seus reis já não serão suficientemente cristãos para que o possam fazer; os Papas só têm efetivo poder para firmar bons governos temporais e impedir os perversos ou tirânicos enquanto se mantém viva a fé do povo e dos reis. Com efeito, lê-se no Livro de Jó (XXXIV, 30) que Deus “faz reinar o homem hipócrita por causa dos pecados do povo”; e completa-o Santo Tomás:[11] “É preciso, portanto, eliminar o pecado, para que cesse a ferida da tirania.” Mas, como se disse, a potestade espiritual não o podia fazer senão enquanto seguisse vigente na sociedade a fé. Não seguiu; e o povo deixou de ver no magistério da Igreja a autoridade delegada por Cristo para impor infalivelmente doutrina e costumes, e para instituir reinos segundo o que se lê em Jerônimo I, 10: “Eis que ponho em tua boca minhas palavras; veja que te constituo hoje sobre as nações e reinos para arrancar e destruir, para arruinar e assolar, para edificar e plantar”, brandindo sempre, como se diz em Efésios VI, 17, “a espada do espírito, que é a palavra de Deus”. Daí que, como escreve o Padre Calderón (ibid.), “ao quererem sacudir o suave jugo de Nosso Senhor, necessariamente a primeira medida dos reis será voltar a espada que tinham recebido de Deus para a vindita do mal – ‘não em vão tem a espada, porque é ministro de Deus, vingador para castigo daquele que age mal’ (Rom., XIII, 4) – contra a espada espiritual que a sujeita e domina”. A harmonia (tão perfeita quanto possível no estado de natureza ferida) que se alcançou na Idade Média entre os dois poderes, com a devida subordinação essencial do temporal ao espiritual, muda-se então em dura guerra, e a partir de então “os Papas deverão pagar a preço de sangue a audácia de recordar às potestades temporais a doutrina da Unam sanctam” (Padre Calderón, ibid.).
Sangue, mas também omissão da íntegra doutrina da ordenação do poder político ao eclesiástico. Com efeito, desde a Bula de Bonifácio VIII até parte do magistério de Leão XIII — ou seja, durante cerca de sete séculos —, o tom do Papado quanto a esta matéria capital é antes apologético. A Igreja é uma cidade sitiada. Será preciso esperar São Pio X e especialmente Pio XI para que o tema volte aos documentos papais com todos os seus contornos e vigor, e caberá a este último Papa fazê-lo ganhar corpo doutrinal definitivo com a Encíclica Quas primas, a Constituição do Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo. Infelizmente, porém, a Cidade espiritual já não está apenas sitiada; já está minada por um longo trabalho de sapa, que a carcome do interior; o resultado será a desolação operada pelo Concílio Vaticano II e a consolidação, na maior parte da Hierarquia e dos fiéis, da Religião do Homem que se quer Deus.
Dessa desolação e dessa consequente consolidação da Religião do Homem decorre, sim, uma obediência cega por parte dos fiéis ao Papa. Mas não se trata da devida obediência aos Papas em seu ofício de impor e imperar doutrina sob a assistência do Espírito Santo, com o que seu magistério se torna regra próxima da fé; trata-se de obediência cega a uma potestade que se quer carente de verdadeira autoridade doutrinal, e exercida, por isso mesmo, de modo maquiavélico.
Ao contrário, portanto, do que diz a tese de Pacheco Salles, aquela obediência cega é resultado, sim, de uma perda da fé, mas de uma perda da fé no magistério eclesiástico como autoridade e regra para a crença do conjunto da Igreja; e, ao contrário ainda do que pode fazer crer a tese adversária, é resultado também da renúncia da mesma Hierarquia, a partir do Concílio Vaticano II, à sua própria autoridade doutrinal, sendo em função dessa renúncia que ela passa a governar a Igreja ao modo de qualquer governo democrático liberal. A tese adversária, todavia, procede em sua premissa menor a uma “reconstrução ideal da história” que inverte os dados da realidade tal como mostrado aqui.
Refuta-se assim, suficientemente, a segunda ideia básica da tese de A Figura deste Mundo.
Passar-se-á, agora, a responder a cada item da exposição que fizemos da tese de A Figura deste Mundo, de Pacheco Salles. O objetivo de tais respostas particulares é não deixar sem esclarecimento nem sequer o que não é central na tese adversária, e isso porque, conquanto não central, nem por isso deixa de ter importância e conexão no conjunto da tese.
1) Em resposta ao item 1, deve-se dizer que pela graça santificante certamente se dá um novo nascimento, o do novo homem em Cristo (“Não te maravilhes de ter dito: Necessário vos é nascer de novo. O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai: assim é todo aquele que é nascido do Espírito”, Jo., III, 7-8; “sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre”, I Ped., I, 23; “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram: eis que tudo se fez novo”, II Coríntios, V, 17); assim como também certamente a fé teologal é infalível em seu ato interno (cf. Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 3). Sucede todavia que como esse ato é, nesta vida, essencialmente indiscernível de qualquer disposição natural que se lhe assemelhe (cf. nossa Refutação, e especialmente Padre Álvaro Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire, p. 290), para que saibamos com toda a certeza em que devemos crer — e pois o que é o erro ou heresia —, as verdades de fé têm de ser propostas por um mestre infalível em seu ato externo: Nosso Senhor Jesus Cristo e o magistério da Igreja, este como prolongamento d’Aquele e cingido aos princípios de fé dados pela Revelação e pelo Traditum.
2) Em resposta ao 2, deve-se dizer que a afirmação segundo a qual “a fé teologal e a graça santificante são a essência mesma do Cristianismo, e delas depende tudo o mais”, já em si mereceria reparos: porque, com efeito, não é possível a caridade não ser da essência mesma da vida do cristão, se é ela “o vínculo da perfeição” (Col., III, 14); se “ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, até o ponto de transportar montes, se não tiver caridade, não sou nada” (I Cor., XIII, 2; grifo nosso); se agora “permanecem [...] a fé, a esperança e a caridade; porém a maior delas é a caridade”, que “nunca há de acabar” (I Cor., XIII, 13 e 8); enquanto passarão, no céu, não só as profecias e a esperança, mas a própria fé. Quanto ao que aqui mais importa, porém, o fato é que o fim da civilização cristã, a partir do século XIII, se deveu não a um crescente culto do dever em geral e a uma crescente obediência cega às autoridades da Igreja, e sim a um crescente culto do dever meramente político e a uma crescentemente exclusiva obediência às autoridades temporais — em detrimento não só do verdadeiro dever de religião para com Cristo, mas do devido assentimento e obediência a seu Vigário. É bem verdade que mesmo a defesa católica, incluída a tomista, contra tal tendência aceitou defender a moral no novo terreno perigosamente subjetivo da consciência: “Embora”, escreve o Padre Calderón em Concilio Vaticano II: la religión del hombre, “sustentassem a legitimidade da sabedoria cristã como regra de conduta, deixaram que se estabelecesse a consciência como regra imediata, o que, conquanto não chegue a ser falso, é desnecessário e inconvenientemente expresso. Pois bem”, prossegue o Padre, “à medida que a crítica que o pensamento moderno e as novas ciências faziam à teologia e à filosofia escolástica foi ganhando terreno, introduzindo o veneno do subjetivismo, o tribunal interior da consciência ia livrando-se da tirania da teologia, abrindo as portas para relativismo moral.” Mas uma coisa é reconhecê-lo, e reconhecê-lo como algo que conduziria ao Concílio Vaticano II, o que é de todo correto; outra, muito diferente, é atribuir à docilidade e obediência ao magistério da Igreja tal efeito, o que, por quanto vimos, é de todo falso.
3) Em resposta ao 3, deve-se dizer que sem dúvida a graça não é um mero auxílio ao bom comportamento e ao combate aos vícios e paixões; mas não deixa de sê-lo também, e em alto grau; e, se nos ordena ela, antes de tudo, a prestar a devida glória a Deus, ordena-nos também a que tenhamos a devida docilidade e obediência ao magistério da Igreja, que, como vimos na “Refutação da primeira ideia básica da tese adversária”, é a regra próxima da fé. A fé, obviamente, não decorre da obediência, dando-se antes o inverso; mas, com respeito ao magistério da Igreja, a implica. Ora, a heresia protestante minou a fé solapando, antes de tudo e precisamente, sua ordenação à docilidade e obediência ao magistério da Igreja, porque, com efeito, a esse solapar leva não só o princípio luterano da sola scriptura, mas também o do livre exame, pelo qual, precisamente, se “atribui o carisma da infalível verdade à fé individual” (P. Calderón, ibid., p. 291). Vê-se, pois, em que ponto e de que modo se tocam a tese sedevacantista aqui tratada e a heresia luterana.
4) Em resposta ao 4, deve-se dizer que, se a razão formal da fé de fato não é propriamente a autoridade do magistério eclesiástico, mas a mesma autoridade divina e sua Revelação (Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 1, corpus: “[...] pois a fé de que falamos não dá seu assentimento a algo que não seja revelado por Deus [...]”; Suma contra os Gentios, I, IX, 3 (53): “Ora, não cremos em verdades que excedam a capacidade da razão humana se não tiverem sido reveladas por Deus)”, permanece, todavia, o fato já firmado de que é o magistério da Igreja a regra próxima da fé. Em outras palavras: não podemos crer senão no que a Igreja afiança tratar-se de verdade divinamente revelada (Santo Tomás, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 10, corpus: “Tem autoridade para fazê-lo [ou seja, para publicar um Símbolo da fé] quem pode determinar em última instância o que é de fé, para que todos possam a ela aderir de maneira inabalável. Isso, todavia, é da alçada do Sumo Pontífice [...].”) Não é pois verdade que o tomar o magistério da Igreja como regra próxima da fé “reduz a fé teologal a mera fé humana”; antes pelo contrário, é o que assegura tratar-se de fé efetivamente sobrenatural e não meramente humana. E, se por um lado é a fé sobrenatural “a única que salva”, por outro lado, repita-se, só o magistério da Igreja nos pode afiançar que se trata de fé teologal, e não de nenhuma contrafação sua.
5) Em resposta ao 5, deve-se dizer que efetivamente, como estabelece Santo Tomás de Aquino, toda e qualquer virtude é a perfeição de determinada potência. Assim, como diz a tese adversária, qualquer ato da potência intelectiva, potência que tem por objeto a verdade, será bom se alcançar a verdade; em outras palavras, não tornarão virtuosa a inteligência humana senão os atos seus que alcancem o verdadeiro.
6) Em resposta ao 6, deve-se dizer que de fato nossa inteligência não tem capacidade de conhecer infalivelmente ou com certeza as verdades divinas (mas apenas as não alcançáveis pela só luz da razão natural; as demais podem em princípio ser conhecidas com certeza, sim, por nosso intelecto). Também é verdade, como já dito, que enquanto virtude teologal infusa a fé é infalível em seu ato interno, ou seja, na adesão da inteligência às verdades divinas; mas, como também já visto, não é verdade que seja tal ato ou adesão o que torna discerníveis ou certas aos homens as verdades de fé, porque o que as torna discerníveis ou certas é a regra próxima da fé: o magistério da Igreja. Por outro lado, ao contrário do que faz a tese adversária, deve-se falar de todo diferentemente quando se trata dos anjos ou de comparar o intelecto humano e o angélico; peca a tese adversária por simplificação “angelista”, um pouco à maneira não só de um Jacques Maritain, mas até de um Descartes ou de um Malebranche. Sim, porque (e citemos extensamente, uma vez mais, o Padre Calderón, ibid., pp. 288-289), “naturalmente, [de potentia absoluta] Deus poderia ter proposto [aos homens] as verdades de fé por uma locução interior tal, que fosse por si mesma critério evidentíssimo e infalível do caráter revelado de tal verdade, como ocorreu de fato com os anjos. No primeiro instante de sua criação, os anjos ainda não tinham a luz da glória, mas a luz da fé pela qual deviam crer em certas verdades reveladas por Deus. Pois bem, nem sequer a natureza angélica pode conhecer a essência sobrenatural do ato de fé; se cada anjo sabia com toda a certeza aquilo em que objetivamente devia crer, é porque a autoridade imediata de Deus formou sobrenaturalmente em sua inteligência certas espécies ao modo de revelação interior. Mas para os homens não convinha essa maneira de revelação, porque ela vai contra sua natureza social. É próprio de homem chegar à verdade ensinado pelo magistério oral de suas autoridades naturais. Daí que Deus, que faz tudo com ordem, nos tenha feito chegar sua revelação não por locução imediata interior, mas por mediação da palavra de mestres dotados de sua mesma autoridade divina”. Assim é que, se de fato, como diz a tese adversária, sem aquela adesão da inteligência às verdades de fé não se ordenaria o homem a seu fim sobrenatural, nem por isso, e muito ao contrário do que diz a referida tese, tal adesão se dá por uma suposta “ciência infusa” ao modo angélico, nem o cristão é provido da prerrogativa de inerrância no que diz respeito a quanto necessita para a sua salvação senão enquanto adere aos dados da fé mediante a regra próxima desta, que por própria dotação e assistência divina é o mesmo carisma magisterial da Igreja.
7) Em resposta ao 7, deve-se dizer que sem dúvida os fiéis devem lutar por sua fé, razão por que, como diz Santo Tomás, Deus não os deixa cair em erro (“si nos fecerimus quod in nobis est [...] Deus non deficiet nobis ab eo quod nobis est necessarium”, De veritate, q. 14, a. 2). Aquela luta convém com o nosso livre-arbítrio, que não é suprimido pela graça (assim, Nossa Senhora não deixa de exercer seu livre-arbítrio ao dizer “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra”, ainda que fosse imperiosa e ineludível a graça de que era cheia para poder ser a Mãe de Deus); enquanto este “não deixar cair em erro” convém com a graça divina (complexa questão teológica: tudo é graça, mas permanece o livre-arbítrio; e, conquanto a predestinação dos eleitos seja anterior à previsão de seus méritos, nem por isso deixa de dizer São Pedro [II, I, 10], para explicar que os méritos são causa não da predestinação, mas sim da salvação efetiva: “Portanto, irmãos, ponde cada vez maior cuidado em tornardes certa a vossa vocação e eleição por meio das boas obras, porque fazendo isto não perecereis jamais”). Mas nada disso implica nenhum “instinto” da fé ou, em outras palavras, nenhum sensus fidei individual certo sem confirmação do magistério da Igreja, “instinto” que como já vimos é de corte luterano; implica, porém, a docilidade ao mesmo magistério da Igreja, o único que, como regra próxima da fé — e ao contrário do que diz a tese adversária —, é capaz de fazer ter certeza com relação aos artigos e sutilezas da fé e, pois, de fazer evitar ou rejeitar os erros com respeito a eles.
8) Em resposta ao 8, deve-se dizer que, obviamente, sem professar a existência de Deus ninguém pode professar nenhuns artigos e sutilezas da fé. E, se o afirmar a existência de Deus pertence antes aos preâmbulos da fé, Deus mesmo no-la revelou porque, no estado de natureza ferida, o obscurecimento ou enceguecimento de nosso intelecto por defeitos físicos ou pelas paixões nos pode levar até ao próprio ateísmo (Santo Tomás, Suma Teológica, I, q. 1, a. 2: “Até com relação ao que a razão humana pode investigar a respeito de Deus era preciso que o homem também fosse instruído por revelação divina. Com efeito, a verdade de Deus, investigada pela razão humana, chegaria apenas a poucos [indivíduos], e depois de longo tempo, e com mescla de muitos erros [...]: no entanto, do conhecimento desta verdade depende a salvação do homem, que se encontra em Deus. Para que a salvação, portanto, chegasse aos homens conveniente e certamente, foi necessário que eles fossem instruídos sobre o divino por revelação divina”). Naturalmente, esse mesmo ato de professar a existência de Deus e seus corolários pode dar-se e se dá no interior de almas individuais; com efeito, dissemos nós na “Refutação da primeira ideia básica da tese adversária”: “Imagine-se a robustez da fé de que Deus dotou um Santo Agostinho ou um Santo Tomás de Aquino, e entender-se-ão em parte os fulgores de inteligência dos mistérios divinos que lhes saíam da mente como em cascata.” “Mas o católico”, prosseguíamos, “incluindo Santo Agostinho e Santo Tomás, só pode ter certeza daquilo que discerne interiormente pela fé [ou, de certo modo e em certa medida, até pela razão natural, no tocante ao que de Deus pode ela investigar e concluir] ‘se o confirmar’, como diz o Padre Calderón (em A Candeia Debaixo do Alqueire), ‘e no grau em que o confirmar o magistério da Igreja’.” Ora, por isso mesmo não é exato dizer, como o faz a tese adversária, que “as verdades em que o cristão deve crer são-nos como que reveladas por Deus” individualmente, nem, muito menos, que, se “tais verdades nos são ordinariamente propostas pela pregação dos homens da Igreja, e conquanto comumente tal pregação seja a condição para a crença nelas, dizer condição não quer dizer suficiência — ela não basta para que tenhamos fé, e isso porque com ela não pode ter senão caráter de persuasão. Mais: não tem ela autoridade para tal, ainda que confirmada por milagres. O ato primordial de fé é posto, é infundido por Deus mesmo, e é por ele que o homem se torna o fiel de Cristo que crerá em todas as Suas verdades”. Por quanto já vimos, tudo isso não passa, de certo modo, de luteranismo mitigado: porque, ao contrário do que quer fazer crer a tese adversária, o magistério da Igreja, enquanto prolongamento de Cristo mesmo e enquanto regra próxima para a crença dos fiéis, é a própria autoridade vicária em matéria de fé. É verdade que não basta o magistério da Igreja para que tenhamos fé; mas é de todo inverdade que, para este efeito, ele não possa ter senão caráter de persuasão; ao contrário, é ele a única garantia de verdade e certeza com respeito à sobrenaturalidade dos dados da fé e, de certo modo e em certa medida, como vimos, até à própria naturalidade de seus preâmbulos.
9) Em resposta ao 9, deve-se dizer que a solução para o dilema causado pelo Concílio Vaticano II e pelo magistério que dele emerge não pode dar-se com o abandono da “verdadeira docilidade que o católico deve guardar diante do magistério da Igreja” (Padre Calderón, ibid., p. 75). Não se trata de arrostar um “falso dogma de obediência incondicional ao Papa como obrigação primeira dos católicos”, como propõe a tese adversária. Não é em si veraz nenhuma oposição entre “o governo do Deus invisível da pura fé” e “um soberano [o Papa] evidente e acessível aos sentidos” que pudesse mudar-se “de vigário de Cristo em substituto de Nosso Senhor”. “A Igreja”, diz ainda o Padre Calderón (idem), “é fundada sobre Pedro, e a solidez desta Pedra reside principalmente na autoridade de seu magistério. Por isso, para romper o dilema atual, não se deve prejulgar a credibilidade do magistério com algum critério diferente do que oferece de si mesma a legítima autoridade, porque então se atentará contra a docilidade católica, que tem como única regra próxima da fé o magistério vivo da Igreja.” Este ponto, porém, se desenvolveria melhor num estudo sobre a também sedevacantista Tese de Cassiciacum, exposta pela primeira vez, em 1973, por M. Guérard des Lauriers, e segundo a qual os papas conciliares são materialiter (materialmente) papas, mas não o são formaliter (formalmente). Ver-se-ia então que esta tese peca desde a base, ou seja, desde a utilização imprópria, incomum e obscura de uma analogia da autoridade, e da autoridade papal em particular, com o composto humano de corpo e alma.
10) Em resposta ao 10, deve-se dizer que afirmar, como o faz a tese adversária, que “a luta pela fé foi absorvida e neutralizada numa obediência beata, cega e incondicional ao rei terreno” é, por tudo quanto vimos aqui, pelo menos equívoco. É verdade que tal obediência “implica um axioma imoral: o de que a ordem do superior livra o subordinado de qualquer responsabilidade própria”; mas, no caso, de uma responsabilidade própria diante de Deus e da fé. Ora, o “rei terreno”, que é a maneira imprópria e pejorativa como se refere ao Papa a tese adversária, não é “rei” senão por prolongamento e delegação da própria Realeza de Cristo. Logo, obedecer e ser dócil ao “rei terreno” é, em princípio, cumprir precisamente com a devida responsabilidade diante de Deus e da fé. Para que se incorresse, em tal caso, na referida imoralidade, seria preciso ou que o referido “rei” de algum modo não fosse “rei” (opinião defendida, exatamente, pelos sedevacantistas), ou que, conquanto “rei”, não empenhasse a sua “realeza”, isto é: não comprometesse, como Papa, sua suprema autoridade. Ora, ao tratar da virtude da obediência, o Doutor Comum naturalmente a põe abaixo das virtudes teologais (fé, esperança e caridade), porque, ainda se tratando de obediência a Deus, que implica o desapego dos bens criados e o desprezo da vontade própria, a obediência não é senão um meio para aquela adesão. Corretamente, portanto, afirma a tese adversária que “as virtudes teologais sobrepujam todas as virtudes morais, porque concernem diretamente a Deus, enquanto estas concernem apenas ao meio mais adequado para nosso fim último, que é Deus mesmo. E, se é verdade que entre as virtudes morais a obediência ressalta, justamente por implicar o desprezo do maior dos bens (a vontade própria), isso em nada muda o fato de que a obediência é uma virtude subalterna, que depende da mesma subordinação às virtudes mais altas para que ela própria seja virtude. Faltando essa subordinação, deixará a obediência de ser virtude, e se mudará em vício”. Sucede, porém, que a fé a que a obediência deve subordinar-se depende, para sua certeza, da própria autoridade do magistério da Igreja enquanto regra próxima. Logo, a virtude da obediência só se mudará em vício ou se se ordenar a um magistério que deixe de comprometer sua autoridade enquanto infalivelmente assistida pelo Espírito Santo, ou se se ordenar anterior ou preferentemente a outra autoridade, a saber, a autoridade política, com o que se rompe a devida e essencial subordinação do temporal ao espiritual. E, com efeito, ambas as coisas ocorreram desde o começo da ruína da Cristandade até o Concílio Vaticano II, mas aquela em decorrência desta, o que porém não consegue perceber quem defenda a tese de Pacheco Salles: porque, como vimos suficientemente, para sustentar sua conclusão sedevacantista, ela opera tanto uma reconstrução ideal da história quanto um recorte da doutrina dos doutores da Igreja, especialmente Santo Tomás de Aquino, e do próprio magistério da Igreja. Se assim não fosse, não se vê como se coadunariam a tese adversária de que o magistério da Igreja não pode ter sobre o fiel católico senão caráter de persuasão e a seguinte declaração magisterial (cujo teor também se encontra em numerosíssimos outros documentos do magistério e na totalidade da obra dos doutores da Igreja): “Por conseguinte, Nós declaramos, dizemos e definimos que é absolutamente necessário para a salvação de qualquer criatura humana ser submissa ao pontífice romano” (Bonifácio VIII, Bula Unam sanctam, 18 de novembro de 1302).
11) Em resposta ao 11, deve-se dizer que, segundo o visto nas primeiras partes deste estudo, o processo de que resultou o Concílio Vaticano II não é o indicado por Pacheco Salles, nem pela conclusão decorrente de sua tese, a saber: “Com uma cristandade inerme, ou seja, destituída do sensus fidei, que é a razão formal da autoridade e pois da legitimidade da Sede de Pedro, esta não poderia senão acabar por ser ocupada pelo inimigo – e a partir desse momento estará propriamente vacante.” Já se mostrou a insustentabilidade daquela premissa, restando porém por refutar a conclusão mesma de sedevacância, que é o que deve fazer após uma refutação da Tese de Cassiciacum e da dos sedevacantistas que se agarram, para defender sua tese, sobretudo à Bula Cum ex Apostolatus Officio, do Papa Paulo IV.
[1] Não se diz aqui, veja-se bem, que Pacheco Salles sustente o sedevacantismo em A Figura deste Mundo (não publicado em livro). Mas diz-se, sim, que é precisamente das teses brandidas nessa obra que se valem muitos sedevacantistas isolados. Além disso, sirva mutatis mutandis para este breve estudo sobre o sedevacantismo o que diz o Padre Álvaro Calderón da quaestio disputata, que “é um combate de argumentos e não de pessoas”, razão por que “retomamos cada objeção por conta própria, tentando dar-lhes a forma mais eficaz que a brevidade permite. É assim que mais de uma vez o argumento se volta contra a intenção do autor em que se inspira” (A Candeia Debaixo do Alqueire, Rio de Janeiro, Edições Mosteiro da Santa Cruz/Sétimo Selo, 2009, p. 19).
[2] “Os que querem investigar com êxito devem começar por suscitar bem as dificuldades, pois o êxito posterior consiste na solução das dúvidas anteriores, e não é possível soltar se se desconhece a atadura” (Aristóteles, Metafísica, livro I, c. 1).
[3] Repita-se: não digo que Pacheco Salles sustente o sedevacantismo em A Figura deste Mundo. Mas digo que é precisamente do argumento esgrimido nessa obra que se valem muitos sedevacantistas isolados. Cf. nota 1, supra.
[4] Um dogma de fé só pode partir do magistério eclesiástico justamente pelo fato de seu ministério não ter como critério próprio a fé nem a razão. Com efeito, embora um Papa deva considerar teologicamente – ou seja, humano modo – o que vai definir, o carisma da infalibilidade que o assiste “quando define um dogma não depende de sua fé nem de sua ciência pessoal, pois ele poderia ser herege interiormente e nem por isso deixaria de ser infalível. O critério de verdade do magister eclesiástico é a assistência do Espírito Santo atualizada por sua intenção ministerial, pois para falar em nome de Cristo ele não tem senão de fazê-lo intencionalmente; de maneira que, [...] quanto mais impositiva for a intenção com que propõe sua sentença, mais assistida será pelo Espírito Santo e menos margem de erro terá” (P. Calderón, ibid.). E o que se acaba de dizer é verdade de fé e deve pois ser crido docilmente; mas é negado pelo sedevacantismo de que tratamos aqui.
[5] Comentário à Física de Aristóteles, livro II, n. 268.
[6] Patrologia Latina Migne, t. LIV, col. 42.
[7] Citado por Glez, Pouvoir du Pape dans l’ordre temporel, en DTC, col. 2714, apud Padre Calderón, op. cit.
[8] Las Siete Partidas — BOE, 1999 (edição fac-similar da edição de 1555, com glosas de Gregorio López).
[9] Cód. 9614 dos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
[10] Carta Sicut universitatis, 30-10-1198, Denzinger-Hünermann 767; negrito nosso.
[11] De regno, lib. 1, cap. 7.
SPES - Santo Tomás de Aquino: Crítica do sedevacantismo (I)
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