O mito da igualdade humana
Que todos os homens são iguais é uma proposição à qual, em tempos normais, nenhum ser humano sensato deu, alguma vez, o seu assentimento. Um homem que tem de se submeter a uma operação perigosa não age sob a presunção de que tão bom é um médico como outro qualquer. Quando são precisos funcionários públicos, até os governos mais “democráticos” fazem uma selecção cuidadosa entre os seus súbditos teoricamente iguais. Mas, na realidade, quando abstractamente analisamos a sociedade “democrática”, pensamos ou agimos em termos de igualdade dos homens, ou pelo menos – o que na prática vem a ser o mesmo – procedemos como se estivéssemos certos de que os Homens são iguais.
A quantidade de tempo durante o qual eles estão empenhados em pensar ou agir politicamente é muito reduzida quando comparada com todo o período das suas vidas; mas as breves actividades do homem político exercem uma influência desproporcionada sobre a vida diária do homem trabalhador, do homem a divertir-se, do homem pai e marido, do homem senhor de propriedades. Daí a importância em se saber o que ele pensa na realidade e porque é que o pensa.
Os políticos e os filósofos políticos falaram, muitas vezes, acerca da igualdade do Homem como se fosse uma ideia necessária e inevitável, uma ideia em que os seres humanos têm de acreditar, exactamente como têm de acreditar em noções tais como peso, calor e luz. O Homem é “por natureza livre, igual e independente”, diz Locke, com a segurança de alguém que sabe que está a dizer qualquer coisa que não pode ser negada. Era possível citar literalmente milhares de afirmações semelhantes. “É preciso ser-se louco”, diz Graco Babeuf, “para negar tão manifesta verdade”.
No entanto, do ponto de vista do facto histórico, a noção de igualdade humana é um produto recente, e, longe de ser uma verdade directamente apreendida e necessária, é uma conclusão tirada de assunções metafísicas preexistentes. Nos tempos modernos as doutrinas cristãs da irmandade dos Homens e da sua igualdade perante Deus foram invocadas em apoio da democracia política. Muito ilogicamente, no entanto. As famílias têm os seus patetas e os seus homens geniais, as suas ovelhas ranhosas e os seus santos, os seus êxitos mundanos e os seus falhanços. A igualdade perante Deus não significa a igualdade entre os Homens pela simples razão de que comparadas com uma quantidade infinita todas as quantidades finitas podem ser consideradas iguais. Perante Deus, ele é o ser absoluto e objectivo; é o portador de valores eternos. Mas na vivência dinâmica é o ser subjectivo e diferente que todos conhecemos da realidade prática.
Os escritores que no decurso do século XVIII forneceram à moderna democracia política a sua base filosófica não se voltaram para o cristianismo para encontrarem a doutrina da igualdade humana. Eles eram, quase sem excepção, escritores anti-clericais para quem a ideia de aceitar qualquer auxílio da Igreja teria sido extremamente repugnante. Além disso, a estrutura da Igreja, orientada e organizada para as suas actividades terrenas, não lhes ofereceu qualquer auxílio, mas sim uma franca hostilidade. Ela representava, ainda mais que o estado monárquico e feudal, aquele princípio medieval, hierárquico e aristocrático contra o qual, precisamente, os igualitários protestavam. A origem da ideia moderna da igualdade tem de encontrar-se na filosofia de Aristóteles, que na verdade, como veremos, não era lá muito “democrática”. Vivendo, como o fazia, numa sociedade detentora de escravos, ele considerava a escravatura como um estado necessário das coisas. Estamos portanto perante uma contradição. Esta incoerência revelar-se-ia ao longo da história, na medida em que os bem-pensantes de todas as épocas souberam pôr de um lado o romantismo, se assim se lhe pode chamar, das suas concepções metafísicas sobre o Homem, e do outro lado a realidade – a sua vivência de classe -, a contradição evidente da igualdade humana. No entanto esta falácia romântica viria a influenciar decisivamente o espírito esclarecido dos demo-liberais, pois é na teoria da igualdade humana que a democracia moderna encontra a sua justificação filosófica e uma parte, pelo menos, da sua força motriz. Os preconceitos “democráticos” parecem, àqueles que os acarinham, sagrados, bem como moralmente certos, verdadeiros. A democracia é natural, boa, justa, progressiva, e assim por diante. Os seus opositores são reaccionários, maus, injustos, anti-naturais, etc. Para um vasto número de pessoas, a democracia tornou-se uma ideia religiosa que é dever tentar pôr em prática em todas as circunstâncias, indiferentemente dos requisitos práticos de cada caso particular. A metafísica da democracia, que na origem próxima foi a racionalização dos desejos de certos homens, como Rousseau, por exemplo, para melhorarem a sua sociedade, tornou-se numa teologia universal e absolutamente verdadeira, que “é do mais alto dever de toda a Humanidade pôr em prática”. Assim, Portugal tem de ter a sua democracia, não porque o governo democrático seja melhor do que o governo indemocrático que existia (verifica-se que se está a tornar incomparavelmente pior) mas porque a democracia, em toda a parte e em todas as circunstâncias, está certa.
Tratámos até aqui do pressuposto primário de onde flui toda a teoria e prática da democracia – que todos os homens são iguais. No entanto as investigações científicas do nosso século permitem tirar conclusões completamente contrárias. Desde que se abandonem os preconceitos metafísicos e se desça à investigação do biotipo humano, a realidade é bem diferente.
(ler Aldous Huxley, "Sobre a Democracia e outros temas")
"Tudo lhes pertence e nos cabe, porque a Pátria não se escolhe, acontece. Para além de aprovar ou reprovar cada um dos elementos do inventário secular, a única alternativa é amá-la ou renegá-la. Mas ninguém pode ser autorizado a tentar a sua destruição, e a colocar o partido, a ideologia, o serviço de imperialismos estranhos, a ambição pessoal, acima dela. A Pátria não é um estribo. A Pátria não é um acidente. A Pátria não é uma ocasião. A Pátria não é um estorvo. A Pátria não é um peso. A Pátria é um dever entre o berço e o caixão, as duas formas de total amor que tem para nos receber."Cidade do Santo Nome de Deus de Macau, Não Há Outra Mais Leal
Marcadores