Bonifácio VIII: o Papa mais caluniado da história (II)
Sidney Silveira
Continuação deste texto.
1- Articulador da abdicação de Celestino V?
Os acusadores imputam a Bonifácio VIII o crime de ser o malicioso articulador da abdicação de Celestino V — movido por ambições pessoais e políticas. Mas em que fontes se baseiam? Que documentos sustentam um juízo histórico tão terrível? Antes de chegar a isto, façamos um breve resumo da situação da Igreja no momento do conclave que elegeu Celestino V.
Celestino V e a virulência dos “espirituais” franciscanos
No decorrer do século XIII floresceu na Igreja, sobretudo entre fanáticos franciscanos de extremado caráter milenarista, uma tendência monástica de homens que chamavam a si mesmos de “espirituais”. Propugnavam a mais estrita pobreza, não admitindo que entre eles houvesse propriedade alguma, nem mesmo a dos bens primo usu consumptibiles (comida e vestuário). Para esses monges, a pobreza absoluta representaria a perfeição evangélica da qual nem o Papa os poderia dispensar. Tal visão, que a pretexto de ser “espiritual” é materialista a não mais poder (pois confunde a bem-aventurança da pobreza de espírito, reflexo da verdadeira humildade, com uma pobreza meramente material), será condenada formalmente no século XIV por João XXII, o Papa que canonizará Santo Tomás de Aquino.
Dante Alighieri, de quem se falará adiante e sobre cuja Commedia paira uma terrível sombra gnóstica — o que se entrevê já em sua descida ao “inferno”, périplo em busca do conhecimento nel mezzo del cammin della nostra vita, e não uma experiência escatológica cristã após esta vida —, tinha grande simpatia por esses espirituais franciscanos. Comprova-o o fato de o poeta haver colocado no “céu” o herético Joaquim de Fiore, grande inspirador daqueles frades, atribuindo a São Boaventura as seguintes palavras: “Lucemi da lato/il calavrese abate Gioacchino/di spirito profetico dotato” (Paraíso, Canto XII)[1]. Pois bem, o suposto “espírito profético” de Fiore louvado por Dante começava na idéia de que a Santíssima Trindade, embora divina, seria o símbolo da multidão de homens que, ao longo dos séculos e espalhada pelo mundo, constitui o povo fiel, a Igreja.
Em correspondência a esse conceito de Trindade que agredia frontalmente ao Magistério da Igreja, Fiore dividira a história da humanidade em três idades:
Ø a do Antigo Testamento, que manifestou a glória do Pai (tempo dos homens casados que viviam segundo a carne);
Ø a do Novo Testamento, em que se revelou o Filho (tempo dos clérigos que viviam segundo a carne e o espírito); e
Ø a do “Evangelho Eterno”, que seria o reino do Espírito Santo (tempo dos monges que viveriam apenas segundo o espírito).
De acordo com os cálculos de Fiore, ancorados num misticismo patentemente falso, esta última “idade” teria tido como precursor ninguém menos que São Bento, nos idos do século VI, e alcançaria a plenitude em 1260, ano que demarcaria o começo dos novos tempos, a aurora da espiritualização de toda a história humana. Em suma, no estado de felicidade terrena alicerçado no “Evangelho Eterno” concebido por Fiore, o povo fiel (transformado, forçosamente, em hipóstase da Santíssima Trindade no devir histórico) teria um só coração e uma só alma, e nenhum indivíduo possuiria qualquer coisa de particular ou própria — pois tudo seria comum.
Tal espírito de “pobreza” agradará em cheio à ala mais radical do franciscanismo: a dos “espirituais”, que sem o menor constrangimento davam as costas à condenação de Fiore no IV Concílio de Latrão e seguiam a sua doutrina publicamente. Um deles, Frei Gerardo de Borgo, mestre de teologia em Paris, escreve em 1254 o livro Introductionis in Evangelium aeternum, condenado em 1255 por Alexandre IV. Daí em diante os “espirituais” crescerão em número e em radicalismo, difundindo a teoria joaquinista das três idades em livros, panfletos e discursos. Na pena de alguns desses homens, a tese de Fiore adquirirá proporções messiânicas e se voltará contra o Papado, contra a “Igreja carnal”, a “meretriz do Apocalipse” apegada às seduções do mundo. Expressões como “babilônia Romana” são encontráveis em escritos de autores como Pedro Livi e Jacopone di Todi, os sedevacantistas da época, que não aceitarão Bonifácio VIII como Papa e, unidos ao rei Felipe, o Belo, o chamarão de “Anticristo”, de “besta apocalíptica”, “sodomítico”, “assassino”, “inimigo da fé”.
Levando ao pé da letra a “profecia” de Fiore de que a nova era do Espírito começaria em 1260, esses franciscanos esperavam por uma espécie de papa angélico, reformador da Igreja que instituiria a pobreza absoluta por eles proposta, propulsor do “Evangelho Eterno” cuja ação prática representaria um divisor de águas para o mundo. Ora, dada a insana esperança milenarista desses homens, imagine-se o seu estado de impaciência quando da morte Nicolau IV, em 1292! Na ocasião, os Orsinis e os Colonnas, entre os quais havia distintos papabiles, estavam em guerra aberta e pairava sobre Roma o grave perigo de cisma, devido à discórdia quanto à eleição do novo Pontífice — a qual já demorava dois anos de acirrada briga entre as duas famílias que disputavam a tiara pontifícia.
Com este feio exemplo de guerra político-familiar imiscuída nos assuntos religiosos (embate em meio ao qual paróquias ligadas a uma e a outra família foram atacadas, e em que os cardeais se dividiram de acordo com sua lealdade a Orsinis ou a Colonnas), tenha-se em vista algo que pode incomodar aos espíritos mais idealistas, que não conseguem enxergar matizes nos acontecimentos eclesiásticos por terem uma imagem romantizada da Igreja militante: não obstante a moção do Espírito Santo, o Papado foi, em diferentes épocas, objeto de lutas e intrigas eclesiásticas que puseram totalmente de lado a fé e a salvação das almas, ocasiões nas quais a vontade divina se cumpriu apesar dos pecados humanos, pois Deus — de potentia absoluta — é capaz de extrair de quaisquer males bens infinitos para a Igreja fundada por Cristo. E este foi o caso do período que antecedeu à eleição de Celestino V.
Naquele momento de grande efervescência política e religiosa, o rei Carlos II, de Nápoles, cognominado “O Coxo”, dirige-se a Perugia, cidade onde mais uma vez estavam reunidos os cardeais para o conclave, com um propósito bem definido: acelerar a eleição e, segundo Ricardo Villoslada em sua Historia de la Iglesia Católica, “tirar o maior proveito político possível dela”. O astucioso Carlos II sugeriu então aos cardeais o nome do monge ermitão Pedro de Morrone, um súdito seu, para dar fim ao impasse — homem com quem tinha estado um pouco antes de ir a Perugia. Morrone era um ancião de 85 anos com fama de santidade, religioso de grande rigor ascético que vivia totalmente isolado do mundo, pois se retirara da ordem beneditina para fundar a Congregação dos Ermitãos, no monte Majella, situado nos apeninos italianos.
Esse homem indicado por Carlos II foi eleito Papa em 1294, assumindo o nome de Celestino V.
“Ex plenitudine simplicitatis”
Todos os principais historiadores que pesquisam este período a partir das fontes primárias — sejam católicos ou não — consideram quase um enigma a eleição de Morrone, homem que por inúmeras razões não parecia destinado a tornar-se o chefe supremo da Igreja. Era notória a sua ingenuidade rústica (logo propagada pelos “espirituais” franciscanos como simplicidade evangélica), a sua escassícima ciência a respeito dos homens, o seu nulo conhecimento teológico, a sua timidez mórbida, a sua absoluta inexperiência eclesiástica, a sua radical incapacidade de pastoreio até mesmo de uma simples paróquia, quanto mais da Igreja universal. Também se tornou notória a sua subserviência ao poder político durante o curtíssimo período em que foi Papa, como a seguir se mostrará.
Realisticamente, a resposta mais evidente para esta improvável eleição se impõe: Morrone era totalmente desligado tanto dos Colonnas como dos Orsinis, razão pela qual apareceu como solução para o impasse. E mais: a eleição se deu por meio da esperta manobra do rei de Nápoles em prol de um súdito seu facilmente manipulável, do ponto de vista político. Tudo isso malgrado a real necessidade de reforma eclesiástica, dada a crise ética e religiosa na qual os valores meramente humanos sobrepujavam os sobrenaturais no seio da própria Igreja. Neste ponto observe-se que, como católicos, sabemos muitíssimo bem que os desígnios da Igreja estão nas mãos de Deus e se realizam no tempo histórico pela moção do Espírito Santo, mas essa moção não exclui as contingências humanas que, não raro, maculam materialmente os fins sobrenaturais, embora formalmente não tenham força para os impedir — justamente por serem, apenas, humanas. Ou seja: a vontade de Deus se impõe mesmo quando os desmerecimentos humanos são patentes[2].
Seja como for, o fato é que Celestino V foi eleito graças ao ardil de um político inescrupuloso, e o Papa teve de imediato o apoio de monges fanáticos que viram nele o realizador dos seus anseios milenaristas. A propósito, o seu curtíssimo pontificado de cerca de quatro meses e meio começa com uma “plumada” pela qual promove ao arcebispado de Lyon o filho de Carlos II, justamente o rei por cujo influxo se elegera — um inexperiente rapazola de 20 anos! E a um dos favoritos do rei de Nápoles (o conde de Marsica) Celestino V nomeia senador de Roma. Houve também ocasiões, como aponta Richard McBrien, autor do citado Life of the Popes, em que o Papa atrapalhadamente outorgou o mesmo benefício a quatro ou cinco pretendentes num mesmo ato, além de conceder prebendas com uma facilidade que beirava a prodigalidade.
Terminado o conclave, Carlos II exigiu que o novo Papa residisse em Nápoles, e não em Roma, como queria a Cúria. E o Romano Pontífice obedeceu. Naquela cidade italiana, além da nomeação acima mencionada de um quase adolescente para o arcebispado da importante Lyon, Celestino V acabou fazendo de tudo o que lhe ditava o rei.
Enumeremos apenas três ações bastante significativas:
Ø colocou homens de Carlos II na Cúria e nos Estados pontifícios;
Ø nomeou doze cardeais indicados pelo rei, alguns deles, obviamente, napolitanos;
Ø reintroduziu regras para o conclave que faziam do rei o guardião da eleição papal seguinte — o que tinha perigosas implicações naquele momento histórico.
Celestino V, sendo Pontífice, queria continuar levando vida de anacoreta — o que era absolutamente incompatível com a dignidade suprema do seu cargo. Assim, houve ocasiões em que o Papa simplesmente desapareceu quando precisava estar à frente de uma festividade solene para a Igreja, sendo encontrado numa cela de mosteiro após muito procurarem-no. Próximo ao Advento, propôs algo verdadeiramente insólito em toda a história eclesiástica: que três cardeais assumissem a total responsabilidade pelo governo da Igreja, enquanto ele ficaria rezando e jejuando solitariamente, o que por razões prudenciais foi recusado pelos cardeais. O seu espírito de austeridade, em si louvável, excedia ordinariamente o ponto de equilíbrio e se transformava em atitude de inferioridade diante de fatos e pessoas.
Em vista destas e de muitas outras coisas, informa-nos Villoslada que se começou a dizer o seguinte na Cúria: Celestino V governava não “ex plenitudine suae potestatis”, mas sim “ex plenitudine simplicitatis”. Queria-se com isto apontar a evidente ojeriza do Papa à sua própria autoridade pontifical.
A renúncia de Celestino V e as acusações a Bonifácio VIII
Segundo McBrien, foi justamente depois de ter rejeitada a sua idéia de afastar-se do governo da Igreja para jejuar que Celestino V — por vontade própria — consultou alguns cardeais sobre a possibilidade de renunciar ao pontificado. Villoslada, por sua vez, conta que o desgoverno chegara a tal ponto que vários cardeais o aconselharam mesmo a retirar-se para a vida privada. Somente então, sendo cada vez mais acossado por escrúpulos, Celestino V procurou o douto cardeal Benedito Gaetani (futuro Bonifácio VIII) para informar-se sobre como deveria proceder para renunciar — pois a princípio sua idéia era apenas afastar-se do governo em prol de uma regência a ser feita por cardeais.
Abra-se aqui um parêntese para dizer que, logo após a renúncia de Celestino V, os “espirituais” começaram e propagar, por meio de panfletos e sátiras expressas em linguagem altamente desrespeitosa, que o humilde Pedro de Morrone, o “papa angélico”, havia renunciado ao pontificado graças à astúcia de Gaetani — que o teria induzido a isto. Em sua clássica Storia di Bonifazio VIII e de’ suoi tempi, Luigi Tosti dedica um apêndice a este fato histórico e reduz a pó essa tese, mostrando que as fontes propagadoras desta interpretação ou eram notórias inimigas de Bonifácio VIII (o que veremos quando abordarmos o célebre e infame julgamento post-mortem a que este Papa foi submetido por Felipe, o Belo, e seus sequazes), ou se tratava de documentos de segunda mão escritos em época já distante do fato — os quais simplesmente reproduziam as calúnias do inimigos de Bonifácio sem aduzir novos documentos para sustentar a tese.
E mais: Tosti aponta que as principais fontes primárias — próximas temporalmente do fato e entre as quais havia testemunhas de todo o processo que culminou na renúncia de Celestino V — apenas citam Bonifácio como um dos cardeais consultados pelo Papa renunciante. E que Gaetani, decidida a renúncia por vontade própria de Celestino V, preparou o documento lido de viva voz pelo Papa, a fórmula de abdicação. Celestino leu-a e, de imediato, exortou os cardeais a proceder imediatamente à eleição do próximo Papa.
Presenciada por inúmeras pesssoas, essa exortação, feita sem nenhuma coação externa, assim como a bula por ele publicada, na qual explica que é facultada ao Papa a possibilidade de depor a tiara, são indicadores do porquê de Celestino V passar à história da Igreja como o único Papa a renunciar à suprema dignidade apostólica por livre e espontânea vontade, apesar das tentativas dos "espirituais" e de Felipe, o Belo, de responsabilizar a Bonifácio VIII por sua abdicação, como se Celestino V fosse um estulto sem nenhuma vontade própria ou poder para resistir. Os quatro outros renunciantes o fizeram por pressões políticas (Ponciano, em 235; Silvério, em 537; João XVIII, em 1009; e Bento IX, em 1045). Dante chamará a isto de il gran riffuto e colocará Celestino V no “inferno”. Mas, como apontou-se acima, sobre o poeta se falará depois, pois ele merece um capítulo à parte.
A data da renúncia de Celestino V é 13 de dezembro de 1294. E a quem diz — sem perceber que toma o Papa por um simples demente — que o “pobrezinho” e Santo foi induzido por uma pessoa humana a renunciar ao cargo divinamente instituído por Cristo, o próprio Bonifácio VIII, seu sucessor, dará em 1303 o exemplo de como deve proceder o Romano Pontífice quando há pressões políticas para que renuncie.
Mas acerca disto também se tratará adiante, quando apontar-se como aconteceu a canonização de Pedro de Morrone, desde então Santo Confessor.
(continua)
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1- “Brilha ao meu lado / Joaquim, o abade calabrês / de espírito profético dotado“.
2- No plano político, ainda durante a Cristandade podemos trazer como exemplo o corrupto Delfim francês Carlos — entronizado como Carlos VII graças a Santa Joana D’Arc. Mesmo traída pelo rei no armistício assinado com os borgonheses em troca de dinheiro, ela jamais deu mostras de que Deus tivesse errado na escolha desse rei para a França. Ou seja: foi justamente aquele homem medíocre, pusilânime e venal que Deus escolheu para ser rei; aquele homem por quem Deus ordenou à Santa ir à guerra.
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