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Tema: O Papa mais caluniado da história

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    O Papa mais caluniado da história

    O Papa mais caluniado da história (I)

    Bonifácio VIII






    Sidney Silveira

    A morte de Bonifácio VIII (1235-1303) marca a um só tempo o fim a Idade Média e o começo do lento e progressivo declínio da Cristandade[1].Marca a derrota da visão de mundo fundada na Sagrada Escritura — e defensora da ordenação das coisas materiais às espirituais — para uma concepção de total independência dos governos das nações com relação às leis eclesiásticas.

    Em resumo, o sacrílego atentado sofrido por Bonifácio VIII em 1303, na cidade de Anagni (tramado pelos Colonnas, influente e terrível família romana), é um símbolo da sublevação do absolutismo nacionalista contra o universalismo cristão — coluna vertebral da política do Medievo —, como afirma o historiador Ricardo García-Villoslada. E mais do que isto: é o emblema de uma significativa mudança de vetor nas sociedades, que se consolidará nos séculos imediatamente posteriores ao pontificado de Bonifácio VIII, com a crescente perda do poder político e espiritual da Igreja:


    • do sentido de transcendência para o de imanência;



    • da fé para o indiferentismo religioso e, em seguida, para a apostasia;



    • do espiritualismo para o sensualismo materialista;



    • da moral ascética baseada no Evangelho para um hedonismo libertário de grande virulência antieclesiástica;



    • do sentido coletivista — que visava ao bem comum — para um individualismo crescente, que descambará séculos depois nas democracias liberais;



    • do objetivismo ontológico para o subjetivismo psicológico;



    • do clericalismo fundado na supremacia espiritual do Papado para o laicismo de Estado, em suas várias conformações.


    Em verdade, Bonifácio VIII é o último personagem de um tríptico papal que retrata fielmente a mentalidade do Medievo, no que tange às relações entre a Igreja e o Estado:


    • o reformador Gregório VII (1020/1085) ensinara, em seus Dictatus Papæ, que o Romano Pontífice tem poder para eximir os súditos de qualquer nação da obediência a leis iníquas, e portanto da obediência a governantes tirânicos. Ele deu exemplo disto ao excomulgar e depor ninguém menos que o terrível e poderoso Henrique IV, sacro-imperador Romano-Germânico. “Em nome de Deus Onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, e investido do Seu poder e autoridade, proíbo ao rei Henrique IV, que com inaudita soberba se lançou contra a Igreja, governar o reino da Itália e da Alemanha. Desobrigo a todos os cristãos do juramento de fidelidade que lhe prestaram e mando que ninguém lhe sirva como rei”. Em resumo: por ordem do Papa, devido às leis tirânicas, injustas e anticristãs vigentes naquele império, nenhum católico poderia obedecer ao rei, o que na prática foi o mesmo que depô-lo. Mas a história desse acontecimento extraordinário do pontificado de Gregório VII não é para este breve texto.



    • Inocêncio III (1160/1216), cujo pontificado é um símbolo do que de mais alto e luminoso produziu a Idade Média — no tocante à consolidação da hierarquia sócio-política em que o Papa estava no cume da pirâmide, tendo abaixo de si príncipes e imperadores — postulara o seguinte: pode o Romano Pontífice, ratione et occasione pecatti, depor o rei e coroar outro, tendo em vista o fim último a que se destinam tanto os indivíduos como as sociedades: Deus.



    • Bonifácio VIII propugnara que o poder espiritual da Igreja, dada a superioridade e transcendência do fim a que visa, que é o mesmo para todas as criaturas, pode e deve julgar o poder material se este se desvia, mas não pode ser julgado por ele. E que todas as criaturas racionais (de quaisquer religiões!) estão subordinadas ratione peccati ao Romano Pontífice.





    Preâmbulos da crise bonifaciana

    Como se verá adiante, não se trata de uma despótica teocracia universal que se imiscua em tudo — inclusive no que não lhe é devido intervir — como acusam historiadores modernos que ignoram completamente o que é a Igreja. Quem estuda os documentos do Magistério desses Papas sabe muito bem que os reis se submetiam ao Vigário de Cristo nos negócios que poderiam trazer danos espirituais aos indivíduos e às sociedades. E vale dizer que tal “poder” papal não era absoluto, no sentido de autocrático: o Romano Pontífice tinha acima de si a Cristo-Rei, cabeça invisível atuante misticamente na Igreja e no mundo — e neste contexto os reis, príncipes e imperadores eram os responsáveis pela salvaguarda do bem comum político, que formalmente não poderia divergir nem contrapor-se ao bem comum universal, cujo poder emana do alto.

    O Papa e o imperador eram, pois, as duas cabeças que em harmonia governavam o hierarquizado mundo medieval, e se tal harmonia nem sempre foi um fato durante a Idade Média, ela foi sempre uma aspiração e um modelo para as sociedades e para os indivíduos. Um exemplo disso? O citado Henrique IV, ao ser excomulgado e deposto por Gregório VII, humilhou-se diante desse Papa, beijando-lhe os pés e penitenciando-se para receber a absolvição e não perder a coroa. Mas, homem tremendo que era, não se humilhou porque quis (como demonstram cabalmente as suas ações ao recuperar o cetro), mas sim porque os seus súditos simplesmente obedeceram ao Pontífice e deixaram de lhe prestar obediência. E o mesmo se pode dizer do rei Felipe II, de França, excomulgado por Inocênio III por abandonar a sua esposa, a linda dinamarquesa Ingeburga, para contrair segundas núpcias, à revelia do Papa, com Inês de Meraine. Na ocasião, durante 12 anos, quando Felipe chegava a qualquer cidade francesa os sinos não tocavam. Até que o rei obedeceu ao Papa, voltou para Ingeburga e foi perdoado, tirando a França da interdição que, por ordem do Pontífice, pesava sobre o país. O mesmo Inocêncio III mandou o rei espanhol Afonso IX separar-se da primeira e da segunda esposas, por razões de consagüinidade. O que Afonso IX fez.

    Os Papas medievais sempre fizeram questão de deixar claro que o poder humano e o divino não se contrapõem, e portanto as leis eclesiásticas e as civis não têm entre si nenhum antagonismo, mas complementaridade; assim, quando a Igreja atuava na ordem temporal, tinha em vista o bem sobrenatural. Para explicar isso grandes teólogos do período lançaram mão de uma analogia: sendo a alma ontologicamente superior ao corpo, a Igreja, que governa as almas, será superior ao Império e a qualquer Estado, que governa a ordem material. Entre o poder do Papa e o do rei haveria, pois, relação semelhante à que existe entre o sol e a lua: esta tem expressivo influxo em seu âmbito, mas reflete a luz que recebe do sol — princípio superior.

    Em resumo, o Papa exerceria a sua autoridade sobre o rei de suas formas: a) de modo direto nas coisas espirituais; e b) de modo indireto nas coisas materiais, atinentes à moral e aos costumes (e, portanto, à ordem política), ensinando, admoestando, exortando, corrigindo, condenando, intervindo quando necessário.

    Pois bem. Feito este preâmbulo, comecemos por dizer que a derrocada de Bonifácio VIII resultará historicamente, em primeiro lugar, no absolutismo monárquico. Um absolutismo de conformação extremamente nacionalista, na medida em que as nações, cada vez mais desvinculadas do Romano Pontífice, perderão o sentido de irmandade transnacional sob a liderança da Igreja que caracterizava o Medievo, malgrado as lutas pelo poder inerentes à condição humana no presente estado[2].

    Neste contexto, o embate entre Bonifácio VIII e Felipe, o Belo, rei de França, representa o encarniçado cabo-de-guerra entre duas concepções políticas antagônicas. De um lado, a sociedade hierarquicamente organizada na qual as leis positivas têm três propósitos fundamentais: tornar os homens virtuosos, como afirmava Santo Tomás; preservar o bem comum; e, acima de tudo, conduzir os homens a Deus, tendo por instrumento a Igreja — custodiadora magisterial da verdade do Evangelho, divinamente revelada. De outro lado, sociedades libertárias tendentes ao caos e à entropia, nas quais as leis representam, no melhor dos casos, um útil — porém incômodo — obstáculo à liberdade humana, confundida tristemente com a vertigem de poder oriunda da cupidez dos homens. Lei positiva sem vínculo com a lei eterna, e por esta razão fundadora do humanismo político.

    A propósito, nas sociedades pós-medievais desvinculadas da hierática sombra do Magistério da Igreja, a lei logo descambará num formalismo jurídico (com a tentativa de recuperar alguns aspectos do Direito Romano, ainda na época de Bonifácio VIII, como veremos) e não mais buscará tornar os homens melhores nem ensiná-los o bem, mantendo a ordem pela obediência à lei enraizada nos costumes, como concebia Aristóteles, mas apenas tentará frear a desordem com placebos legislativos; não buscará preservar o bem comum, que, deturpado em seus princípios, se transforma numa quimera irrealizável; e não se ordenará à lei divina como a seu fim, dado o apartamento entre os planos material e espiritual, defendido, já na aurora do século XIV, por Dante Alighieri no livro De Monarchia, que permaneceu por mais de seiscentos anos no Index Librorum Prohibitorum, por óbvias razões magisteriais.

    Estamos, pois, no vértice entre dois mundos: o católico e o liberal. Este último, como afirmara o ensaísta brasileiro José Guilherme Merquior, só se tornou historicamente possível graças à perda, no terreno ético-político, da noção cristã de Summum Bonum e conseqüente dissolução da idéia de bem comum. Neste contexto, o atentado que, em 1303, o já idoso Bonifácio VIII sofre de homens a quem podemos muito bem chamar de inimigos da Igreja representa “a violenta reação da carne às duras exigências do espírito cristão”, frase que pegamos de empréstimo ao Pe. Álvaro Calderón — utilizada no livro A Candeia Debaixo da Alqueire para demarcar a oposição entre a Idade Média e o Renascimento, sendo este último norteado por um espírito de apostasia e revolta.

    Por razões que veremos adiante, a agressão ao Papa também serve como símbolo do ataque à unidade da Igreja, nas perspectivas política e doutrinária. E as conseqüências disto se consumarão, totalmente, no decorrer dos séculos:


    • no plano político, a fratura que se deu no atribulado pontificado de Bonifácio VIII produziu, de forma efetiva, os seus frutos dois séculos mais tarde, quando com a reforma luterana começou a perder-se a unidade cristã entre as nações sob a égide da Igreja. E como os fatos históricos afloram na ambiência que lhes serve de esteio, vale aqui dizer que a reforma luterana teria sido impossível sem os questionamentos ao poder papal que cresceram em progressão geométrica após o pontificado de Bonifácio VIII;



    • no plano doutrinário, os frutos só estarão definitivamente maduros com a consagração do laicismo político no seio da própria Igreja, sete séculos depois de Bonifácio VIII com o Concílio Vaticano II. Na ocasião, o liberalismo é entronizado intra Ecclesiam, e, com relação a este ponto, faça-se um importantíssimo registro: não fosse a bula Una Sanctam, de Bonifácio VIII — impecável do ponto de vista doutrinal e também em sua formulação —, a separação entre a Igreja e o Estado na forma da lei certamente teria acontecido séculos antes, e não somente no século XX! Durante séculos a Una Sanctam foi a incômoda pedra no sapato do espírito liberal que primeiramente atacou no terreno político, depois dentro da própria Igreja.


    Ditas estas coisas, frisemos que uma das táticas do modernismo que dominou a hierarquia da Igreja e os seminários a partir do Vaticano II é recontar a história eclesiástica na perspectiva da nova mentalidade: ecumenista, laicista, antiapostólica, moralmente laxa, humanista, naturalista, etc. É denigrir, sem o menor escrúpulo, os feitos da Igreja no passado e a memória de personagens — clérigos ou seculares — que a defenderam nos planos material e espiritual. Neste contexto, como diz o citado Álvaro Caldeón, o pedido de desculpas do Papa João Paulo II pelos “erros” do passado não é propriamente um mea culpa perante o mundo, mas sim um culpa vestra, ou seja: a culpa seria da supostamente autocrática Igreja medieval, que quase nada teria a ver com essa Igreja tão comodamente adaptada ao espírito mundano, com essa Igreja cuja mentalidade foi modificada durante o seu longo pontificado, com espalhafatoso aplauso midiático do mundo. O pedido papal de desculpas não é (reiteremos!) a assunção de uma culpa histórica, mas a acusação à Igreja do passado, cujos pressupostos foram “desconstruídos” por João Paulo II ao longo de vinte e sete anos, na teoria e na prática.

    Pois bem, essa tática de recontar a história a partir de novas premissas eclesiais é aplicada de forma pertinaz a Bonifácio VIII — sem dúvida o Papa mais caluniado da história —, seja por inimigos internos ou externos da Igreja. E, dado o fato de que muito poucas pessoas recorrem às fontes primárias para sustentar os seus juízos históricos, até entre defensores da Tradição da Igreja hoje se encontram detratores deste notável Papa, infelizmente.

    Assim, de Bonifácio VIII se diz — entre outras coisas — o seguinte:


    • Foi ele o articulador da abdicação de seu antecessor, Celestino V. A propósito, antes de tudo vale dizer que Celestino V, ao tornar-se Papa, era um idoso monge ligado a fanáticos franciscanos autodenominados de “espirituais”, adeptos do messianismo milenarista do herético monge cisterciense Joaquim de Fiore — condenado solenemente no IV Concílio de Latrão. Veremos em que sombrias circunstâncias se deu a canonização de Celestino V como Santo Confessor.



    • Encarcerou o Papa renunciante de forma cruel, injustificável e insana, levando-o a morrer em condições desumanas — sob tortura física e psicológica. Alguns chegam a dizer que a cabeça de Celestino V teria sido partida ao meio, por ordem de Bonifácio VIII.



    • Foi politicamente culpado pela ida do Papado a Avingon, e por quase criar um cisma.



    • Proclamou documentos — como as bulas Clericis laicos e Una Sanctam — que se imiscuíam nas coisas seculares indevidamente, em razão de sua má-compreensão das relações entre a Igreja e o Estado.



    • Foi um tirano opressor da liberdade política em várias nações européias.



    • Exterminou cruelmente uma cidade inteira (Palestrina), levando à morte mulheres e crianças.



    • Defendeu uma hierocracia universal, entendida de forma errônea por alguns cientistas políticos contemporâneos como “augustinismo político”.



    • Dante o colocou no “inferno” em sua Comédia, e por razões justíssimas. A isto, mais à frente, além de explicarmos que Dante (cuja concepção política do livro De Monarchia foi condenada solenemente pela Igreja) não tem poder algum para colocar quem quer que seja no inferno real, mostraremos como o ódio do poeta a Bonifácio VIII se transformara numa patológica monomania. A propósito, como sói acontecer com os acusadores, com os caluniadores.


    Veremos se estas e outras acusações contra Bonifácio VIII têm algum fundamento histórico, tomando por base três obras:


    1. Storia di Bonifazio VIII e de’ suoi tempi, famosa biografia de Luigi Tosti publicada em 1846. A obra foi reeditada recentemente e traz abundantíssima quantidade de fontes primárias. Ela pode ser lida por inteiro, numa antiga edição, neste link;



    1. Historia de la Iglesia Medieval, do mencionado Ricardo García-Villoslada, escrita em meados da década de 50 do século passado. A propósito, Villoslada é também um pesquisador que traz à luz abundantes fontes primárias, sem as quais qualquer juízo histórico vira quase uma boataria;



    1. Lives of the Popes. The Pontiffs from St. Peter to John Paul II, de Richard MacBrien, insuspeito professor de teologia da Universidade de Notre Dame. Digo “insuspeito” por ser um modernista da melhor cepa.


    Por uma questão pedagógica, separaremos a nossa análise pelos tópicos acima, aos quais acrescentaremos outros, de acordo com a necessidade da explicação. Comecemos, pois, pela primeira dessas acusações e sigamos a ordem delas — sempre partindo dialeticamente de uma interrogação.


    1. Articulador da abdicação de Celestino V?


    Os acusadores imputam a Bonifácio VIII o crime de ser o malicioso articulador da abdicação de Celestino V — movido por ambições pessoais e políticas. Mas em que fontes se baseiam? Que documentos sustentam juízo um histórico tão terrível?

    (continua)

    __________________________


    1-Não concordamos com os historiadores que pretendem levar à Idade Média até a queda de Constantinopla (1453), ou ao Descobrimento da América (1492), ou ainda à rebelião da reforma luterana (1517), pois estes acontecimentos são insuficientes para demarcar a mudança de mentalidade que é o divisor de águas entre as épocas medieval e moderna. Neste ponto estamos totalmente de acordo com Ricardo G. Villoslada, para quem o terminus ad quem da Idade Média é 1303, com a morte de Bonifácio VIII, embora divirjamos deste autor no que diz respeito ao conceito de hierocracia universal aplicado a este Papa.

    2- Somos compelidos a registrar que as lutas intestinas pelo poder são encontráveis em absolutamente todas as épocas, desde a Antiguidade mais remota. E, como católicos, cremos que assim será até o final dos tempos, devido à mancha do pecado original. Na Idade Média, no entanto, havia uma contraforça espiritual que punha um freio (na medida do possível, é claro) à degradação humana: a Igreja e seu Magistério.

    Contra Impugnantes

  2. #2
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    Re: O Papa mais caluniado da história

    Bonifácio VIII: o Papa mais caluniado da história (II)

    Sidney Silveira


    Continuação deste texto.

    1- Articulador da abdicação de Celestino V?


    Os acusadores imputam a Bonifácio VIII o crime de ser o malicioso articulador da abdicação de Celestino V — movido por ambições pessoais e políticas. Mas em que fontes se baseiam? Que documentos sustentam um juízo histórico tão terrível? Antes de chegar a isto, façamos um breve resumo da situação da Igreja no momento do conclave que elegeu Celestino V.


    Celestino V e a virulência dos “espirituais” franciscanos



    No decorrer do século XIII floresceu na Igreja, sobretudo entre fanáticos franciscanos de extremado caráter milenarista, uma tendência monástica de homens que chamavam a si mesmos de “espirituais”. Propugnavam a mais estrita pobreza, não admitindo que entre eles houvesse propriedade alguma, nem mesmo a dos bens primo usu consumptibiles (comida e vestuário). Para esses monges, a pobreza absoluta representaria a perfeição evangélica da qual nem o Papa os poderia dispensar. Tal visão, que a pretexto de ser “espiritual” é materialista a não mais poder (pois confunde a bem-aventurança da pobreza de espírito, reflexo da verdadeira humildade, com uma pobreza meramente material), será condenada formalmente no século XIV por João XXII, o Papa que canonizará Santo Tomás de Aquino.


    Dante Alighieri, de quem se falará adiante e sobre cuja Commedia paira uma terrível sombra gnóstica — o que se entrevê já em sua descida ao “inferno”, périplo em busca do conhecimento nel mezzo del cammin della nostra vita, e não uma experiência escatológica cristã após esta vida —, tinha grande simpatia por esses espirituais franciscanos. Comprova-o o fato de o poeta haver colocado no “céu” o herético Joaquim de Fiore, grande inspirador daqueles frades, atribuindo a São Boaventura as seguintes palavras: “Lucemi da lato/il calavrese abate Gioacchino/di spirito profetico dotato” (Paraíso, Canto XII)[1]. Pois bem, o suposto “espírito profético” de Fiore louvado por Dante começava na idéia de que a Santíssima Trindade, embora divina, seria o símbolo da multidão de homens que, ao longo dos séculos e espalhada pelo mundo, constitui o povo fiel, a Igreja.


    Em correspondência a esse conceito de Trindade que agredia frontalmente ao Magistério da Igreja, Fiore dividira a história da humanidade em três idades:


    Ø a do Antigo Testamento, que manifestou a glória do Pai (tempo dos homens casados que viviam segundo a carne);

    Ø a do Novo Testamento, em que se revelou o Filho (tempo dos clérigos que viviam segundo a carne e o espírito); e

    Ø a do “Evangelho Eterno”, que seria o reino do Espírito Santo (tempo dos monges que viveriam apenas segundo o espírito).


    De acordo com os cálculos de Fiore, ancorados num misticismo patentemente falso, esta última “idade” teria tido como precursor ninguém menos que São Bento, nos idos do século VI, e alcançaria a plenitude em 1260, ano que demarcaria o começo dos novos tempos, a aurora da espiritualização de toda a história humana. Em suma, no estado de felicidade terrena alicerçado no “Evangelho Eterno” concebido por Fiore, o povo fiel (transformado, forçosamente, em hipóstase da Santíssima Trindade no devir histórico) teria um só coração e uma só alma, e nenhum indivíduo possuiria qualquer coisa de particular ou própria — pois tudo seria comum.


    Tal espírito de “pobreza” agradará em cheio à ala mais radical do franciscanismo: a dos “espirituais”, que sem o menor constrangimento davam as costas à condenação de Fiore no IV Concílio de Latrão e seguiam a sua doutrina publicamente. Um deles, Frei Gerardo de Borgo, mestre de teologia em Paris, escreve em 1254 o livro Introductionis in Evangelium aeternum, condenado em 1255 por Alexandre IV. Daí em diante os “espirituais” crescerão em número e em radicalismo, difundindo a teoria joaquinista das três idades em livros, panfletos e discursos. Na pena de alguns desses homens, a tese de Fiore adquirirá proporções messiânicas e se voltará contra o Papado, contra a “Igreja carnal”, a “meretriz do Apocalipse” apegada às seduções do mundo. Expressões como “babilônia Romana” são encontráveis em escritos de autores como Pedro Livi e Jacopone di Todi, os sedevacantistas da época, que não aceitarão Bonifácio VIII como Papa e, unidos ao rei Felipe, o Belo, o chamarão de “Anticristo”, de “besta apocalíptica”, “sodomítico”, “assassino”, “inimigo da fé”.


    Levando ao pé da letra a “profecia” de Fiore de que a nova era do Espírito começaria em 1260, esses franciscanos esperavam por uma espécie de papa angélico, reformador da Igreja que instituiria a pobreza absoluta por eles proposta, propulsor do “Evangelho Eterno” cuja ação prática representaria um divisor de águas para o mundo. Ora, dada a insana esperança milenarista desses homens, imagine-se o seu estado de impaciência quando da morte Nicolau IV, em 1292! Na ocasião, os Orsinis e os Colonnas, entre os quais havia distintos papabiles, estavam em guerra aberta e pairava sobre Roma o grave perigo de cisma, devido à discórdia quanto à eleição do novo Pontífice — a qual já demorava dois anos de acirrada briga entre as duas famílias que disputavam a tiara pontifícia.


    Com este feio exemplo de guerra político-familiar imiscuída nos assuntos religiosos (embate em meio ao qual paróquias ligadas a uma e a outra família foram atacadas, e em que os cardeais se dividiram de acordo com sua lealdade a Orsinis ou a Colonnas), tenha-se em vista algo que pode incomodar aos espíritos mais idealistas, que não conseguem enxergar matizes nos acontecimentos eclesiásticos por terem uma imagem romantizada da Igreja militante: não obstante a moção do Espírito Santo, o Papado foi, em diferentes épocas, objeto de lutas e intrigas eclesiásticas que puseram totalmente de lado a fé e a salvação das almas, ocasiões nas quais a vontade divina se cumpriu apesar dos pecados humanos, pois Deus — de potentia absoluta — é capaz de extrair de quaisquer males bens infinitos para a Igreja fundada por Cristo. E este foi o caso do período que antecedeu à eleição de Celestino V.


    Naquele momento de grande efervescência política e religiosa, o rei Carlos II, de Nápoles, cognominado “O Coxo”, dirige-se a Perugia, cidade onde mais uma vez estavam reunidos os cardeais para o conclave, com um propósito bem definido: acelerar a eleição e, segundo Ricardo Villoslada em sua Historia de la Iglesia Católica,tirar o maior proveito político possível dela”. O astucioso Carlos II sugeriu então aos cardeais o nome do monge ermitão Pedro de Morrone, um súdito seu, para dar fim ao impasse — homem com quem tinha estado um pouco antes de ir a Perugia. Morrone era um ancião de 85 anos com fama de santidade, religioso de grande rigor ascético que vivia totalmente isolado do mundo, pois se retirara da ordem beneditina para fundar a Congregação dos Ermitãos, no monte Majella, situado nos apeninos italianos.


    Esse homem indicado por Carlos II foi eleito Papa em 1294, assumindo o nome de Celestino V.


    “Ex plenitudine simplicitatis”


    Todos os principais historiadores que pesquisam este período a partir das fontes primárias — sejam católicos ou não — consideram quase um enigma a eleição de Morrone, homem que por inúmeras razões não parecia destinado a tornar-se o chefe supremo da Igreja. Era notória a sua ingenuidade rústica (logo propagada pelos “espirituais” franciscanos como simplicidade evangélica), a sua escassícima ciência a respeito dos homens, o seu nulo conhecimento teológico, a sua timidez mórbida, a sua absoluta inexperiência eclesiástica, a sua radical incapacidade de pastoreio até mesmo de uma simples paróquia, quanto mais da Igreja universal. Também se tornou notória a sua subserviência ao poder político durante o curtíssimo período em que foi Papa, como a seguir se mostrará.


    Realisticamente, a resposta mais evidente para esta improvável eleição se impõe: Morrone era totalmente desligado tanto dos Colonnas como dos Orsinis, razão pela qual apareceu como solução para o impasse. E mais: a eleição se deu por meio da esperta manobra do rei de Nápoles em prol de um súdito seu facilmente manipulável, do ponto de vista político. Tudo isso malgrado a real necessidade de reforma eclesiástica, dada a crise ética e religiosa na qual os valores meramente humanos sobrepujavam os sobrenaturais no seio da própria Igreja. Neste ponto observe-se que, como católicos, sabemos muitíssimo bem que os desígnios da Igreja estão nas mãos de Deus e se realizam no tempo histórico pela moção do Espírito Santo, mas essa moção não exclui as contingências humanas que, não raro, maculam materialmente os fins sobrenaturais, embora formalmente não tenham força para os impedir — justamente por serem, apenas, humanas. Ou seja: a vontade de Deus se impõe mesmo quando os desmerecimentos humanos são patentes[2].


    Seja como for, o fato é que Celestino V foi eleito graças ao ardil de um político inescrupuloso, e o Papa teve de imediato o apoio de monges fanáticos que viram nele o realizador dos seus anseios milenaristas. A propósito, o seu curtíssimo pontificado de cerca de quatro meses e meio começa com uma “plumada” pela qual promove ao arcebispado de Lyon o filho de Carlos II, justamente o rei por cujo influxo se elegera — um inexperiente rapazola de 20 anos! E a um dos favoritos do rei de Nápoles (o conde de Marsica) Celestino V nomeia senador de Roma. Houve também ocasiões, como aponta Richard McBrien, autor do citado Life of the Popes, em que o Papa atrapalhadamente outorgou o mesmo benefício a quatro ou cinco pretendentes num mesmo ato, além de conceder prebendas com uma facilidade que beirava a prodigalidade.


    Terminado o conclave, Carlos II exigiu que o novo Papa residisse em Nápoles, e não em Roma, como queria a Cúria. E o Romano Pontífice obedeceu. Naquela cidade italiana, além da nomeação acima mencionada de um quase adolescente para o arcebispado da importante Lyon, Celestino V acabou fazendo de tudo o que lhe ditava o rei.


    Enumeremos apenas três ações bastante significativas:

    Ø colocou homens de Carlos II na Cúria e nos Estados pontifícios;

    Ø nomeou doze cardeais indicados pelo rei, alguns deles, obviamente, napolitanos;

    Ø reintroduziu regras para o conclave que faziam do rei o guardião da eleição papal seguinte — o que tinha perigosas implicações naquele momento histórico.


    Celestino V, sendo Pontífice, queria continuar levando vida de anacoreta — o que era absolutamente incompatível com a dignidade suprema do seu cargo. Assim, houve ocasiões em que o Papa simplesmente desapareceu quando precisava estar à frente de uma festividade solene para a Igreja, sendo encontrado numa cela de mosteiro após muito procurarem-no. Próximo ao Advento, propôs algo verdadeiramente insólito em toda a história eclesiástica: que três cardeais assumissem a total responsabilidade pelo governo da Igreja, enquanto ele ficaria rezando e jejuando solitariamente, o que por razões prudenciais foi recusado pelos cardeais. O seu espírito de austeridade, em si louvável, excedia ordinariamente o ponto de equilíbrio e se transformava em atitude de inferioridade diante de fatos e pessoas.


    Em vista destas e de muitas outras coisas, informa-nos Villoslada que se começou a dizer o seguinte na Cúria: Celestino V governava não “ex plenitudine suae potestatis”, mas sim “ex plenitudine simplicitatis”. Queria-se com isto apontar a evidente ojeriza do Papa à sua própria autoridade pontifical.


    A renúncia de Celestino V e as acusações a Bonifácio VIII


    Segundo McBrien, foi justamente depois de ter rejeitada a sua idéia de afastar-se do governo da Igreja para jejuar que Celestino V — por vontade própria — consultou alguns cardeais sobre a possibilidade de renunciar ao pontificado. Villoslada, por sua vez, conta que o desgoverno chegara a tal ponto que vários cardeais o aconselharam mesmo a retirar-se para a vida privada. Somente então, sendo cada vez mais acossado por escrúpulos, Celestino V procurou o douto cardeal Benedito Gaetani (futuro Bonifácio VIII) para informar-se sobre como deveria proceder para renunciar — pois a princípio sua idéia era apenas afastar-se do governo em prol de uma regência a ser feita por cardeais.


    Abra-se aqui um parêntese para dizer que, logo após a renúncia de Celestino V, os “espirituais” começaram e propagar, por meio de panfletos e sátiras expressas em linguagem altamente desrespeitosa, que o humilde Pedro de Morrone, o “papa angélico”, havia renunciado ao pontificado graças à astúcia de Gaetani — que o teria induzido a isto. Em sua clássica Storia di Bonifazio VIII e de’ suoi tempi, Luigi Tosti dedica um apêndice a este fato histórico e reduz a pó essa tese, mostrando que as fontes propagadoras desta interpretação ou eram notórias inimigas de Bonifácio VIII (o que veremos quando abordarmos o célebre e infame julgamento post-mortem a que este Papa foi submetido por Felipe, o Belo, e seus sequazes), ou se tratava de documentos de segunda mão escritos em época já distante do fato — os quais simplesmente reproduziam as calúnias do inimigos de Bonifácio sem aduzir novos documentos para sustentar a tese.


    E mais: Tosti aponta que as principais fontes primárias — próximas temporalmente do fato e entre as quais havia testemunhas de todo o processo que culminou na renúncia de Celestino V — apenas citam Bonifácio como um dos cardeais consultados pelo Papa renunciante. E que Gaetani, decidida a renúncia por vontade própria de Celestino V, preparou o documento lido de viva voz pelo Papa, a fórmula de abdicação. Celestino leu-a e, de imediato, exortou os cardeais a proceder imediatamente à eleição do próximo Papa.



    Presenciada por inúmeras pesssoas, essa exortação, feita sem nenhuma coação externa, assim como a bula por ele publicada, na qual explica que é facultada ao Papa a possibilidade de depor a tiara, são indicadores do porquê de Celestino V passar à história da Igreja como o único Papa a renunciar à suprema dignidade apostólica por livre e espontânea vontade, apesar das tentativas dos "espirituais" e de Felipe, o Belo, de responsabilizar a Bonifácio VIII por sua abdicação, como se Celestino V fosse um estulto sem nenhuma vontade própria ou poder para resistir. Os quatro outros renunciantes o fizeram por pressões políticas (Ponciano, em 235; Silvério, em 537; João XVIII, em 1009; e Bento IX, em 1045). Dante chamará a isto de il gran riffuto e colocará Celestino V no “inferno”. Mas, como apontou-se acima, sobre o poeta se falará depois, pois ele merece um capítulo à parte.


    A data da renúncia de Celestino V é 13 de dezembro de 1294. E a quem diz — sem perceber que toma o Papa por um simples demente — que o “pobrezinho” e Santo foi induzido por uma pessoa humana a renunciar ao cargo divinamente instituído por Cristo, o próprio Bonifácio VIII, seu sucessor, dará em 1303 o exemplo de como deve proceder o Romano Pontífice quando há pressões políticas para que renuncie.


    Mas acerca disto também se tratará adiante, quando apontar-se como aconteceu a canonização de Pedro de Morrone, desde então Santo Confessor.



    (continua)



    ________________

    1- “Brilha ao meu lado / Joaquim, o abade calabrês / de espírito profético dotado“.

    2- No plano político, ainda durante a Cristandade podemos trazer como exemplo o corrupto Delfim francês Carlos — entronizado como Carlos VII graças a Santa Joana D’Arc. Mesmo traída pelo rei no armistício assinado com os borgonheses em troca de dinheiro, ela jamais deu mostras de que Deus tivesse errado na escolha desse rei para a França. Ou seja: foi justamente aquele homem medíocre, pusilânime e venal que Deus escolheu para ser rei; aquele homem por quem Deus ordenou à Santa ir à guerra.

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    Re: O Papa mais caluniado da história

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    Bonifácio VIII: o Papa mais caluniado da história (III)



    [continuação deste texto]



    Sidney Silveira

    2- Assassino de Celestino V?

    Aquilo que Santo Agostinho chamara de “cidades do amor próprio”, nas quais os homens são carniça do demônio, representa o terrível influxo do pecado original sobre as sociedades, sem nenhuma exceção. Em resumo, há uma gota da baba de Caim — fundador da primeira cidade, segundo o relato bíblico (Gn, IV, 17) — em todas as Pólis, desde a perda do Éden. Esta premissa teológica de Agostinho n’A Cidade de Deus nos servirá como ponto de partida para a análise das relações entre a Igreja e o Estado durante o pontificado de Bonifácio VIII, ou seja: em meio à grave insurreição do poder temporal contra o eclesiástico que fundou a Idade Moderna, espiritual e politicamente.

    Diz o bispo de Hipona:

    A soberba é o que de pior e mais condenável pode haver, pois busca o recurso das escusas mesmo para os pecados mais evidentes. Assim fizeram os nossos primeiros pais. Eva disse: “A serpente me enganou e eu comi”; e Adão disse: “A mulher que me deste por companheira deu-me o fruto e eu o comi” (Gn, III, 12-13). Jamais o pedido de perdão! Jamais a busca do remédio! Embora, como Caim, não tenham negado o que fizeram, a sua soberba os fez descarregar sobre o outro a responsabilidade pelas más obras. A soberba da mulher culpou a serpente, a do varão culpou a mulher” (Santo Agostinho, A Cidade de Deus, XIV, 15, 1).

    O relato de Agostinho nos mostra que, com o pecado, se perdeu no ato a inocência original — e as cidades fundadas pelos descendentes dos primeiros pais da humanidade não poderiam deixar de ser o reflexo dessa dramática queda: ímpias, idólatras, sensuais ao extremo, orgulhosas, cúpidas, revoltadas contra Deus e suas leis. Somente com Cristo e o Seu Corpo Místico, que é a Igreja, se poderá instituir em terreno sólido a Cidade de Deus, que, ao contrário da cidade do amor-próprio, trará o único remédio capaz de encaminhar as almas ao céu.

    Com este quadro podemos ter clara a idéia de que o papel da Igreja nas sociedades é de mestra, médica e juíza: mestra porque ensina a partir dos tesouros espirituais da Sagrada Escritura e do Magistério participado por Cristo, ou seja, educa repetindo o que Cristo ensinou e mandou ensinar (ergo euntes docete omnes gentes, Mt. II, 18); médica porque com sua doutrina e com os sacramentos traz para o corpo social a sanidade e a santidade, frutos da graça, sem as quais não haveria freio à maldade e à perdição; juíza porque, à luz dos ensinamentos divinos, tem o critério infalível para julgar se os indivíduos e as sociedades encaminham-se a Deus ou ao capeta. Neste contexto, todas as suas intervenções legislativas e/ou coercitivas no âmbito do Estado serão sub ratione peccati, com a autoridade de Cristo — e, portanto, daquele que até o Juízo Final estará em seu lugar (Viccarius Christi): o Papa.

    Estes são, pois, os principais vetores da política católica consagrada solenemente no Magistério de Bonifácio VIII e no que se lhe seguiu, até a derrocada doutrinal ocorrida no último quartel do século XX. Tendo-os bem claros no horizonte, prossigamos contando a sua apaixonante e trágica história.

    Vimos, com o historiador Luigi Tosti, que a abdicação de Celestino V, ao contrário do que dizem os detratores de Bonifácio VIII, se deu motu proprio, ou seja: foi ele o único Papa da história a renunciar por vontade própria, publicamente expressa[1]; il gran rifiuto, nos versos de Dante. Agora vejamos o que sucedeu imediatamente após este acontecimento de grande importância para a história da Igreja.

    Ricardo Villoslada afirma que é absolutamente fantástica e legendária a frase que Celestino V teria dito ao Cardeal Gaetani: Intrabis ut vulpes, regnabis ut leo et morieris ut canis. “Entrarás como raposa, reinarás como leão e morrerás como cão”. E o diz porque, como historiador honesto, verificou a inexistência de fontes seguras que confirmem tal “profecia” — que, a propósito, os fatos contrariarão eloqüentemente, se contemplados à luz da fé. É bem provável que esse suposto dito de Celestino V tenha sido mais uma das incontáveis invenções espalhadas contra Bonifácio VIII por seus inimigos, e os motivos deste parecer serão expostos adiante, no decorrer dos textos desta série. Seja como for, os vinte e quatro cardeais reunidos na véspera do Natal de 1294 elegeram o Cardeal Gaetani, que assumiu o nome de Bonifácio VIII.

    Ao contrário do que sucedera com Celestino V, o rei Carlos II não conseguiu reter Bonifácio VIII em Nápoles. E mais: viu-se compelido a logo acompanhá-lo a Roma, que é o lugar do Papado por excelência, de onde Pedro ex cathedra espraia a sua autoridade a todo o orbe cristão. E aos 4 de janeiro de 1295 a comitiva pontifícia deixou o Castel Nuovo, em Nápoles — onde reinava Carlos I, tendo até então o Papa anterior sob o seu domínio político — e partiu para Roma, onde Bonifácio VIII recebeu a tiara pontifícia.

    De acordo com os principais historiadores e cronistas, a primeira medida do novo Papa foi revogar os privilégios que Celestino V havia outorgado de forma pródiga (e, em alguns casos, irresponsável), até que se organizasse administrativamente a Cúria. Assim, prebendas, nomeações altamente duvidosas de bispos e outras concessões e benefícios foram suspensos. Outro problema não menos importante, e muito mais imediato, apresentou-se ao recém-empossado Papa: a ameaça de cisma crescera vertiginosamente após a renúncia de Celestino V, com a grita generalizada por parte dos “espirituais” franciscanos: sátiras e memoriais blasfemos contra Bonifácio VIII foram imediatamente espalhados, tanto por esses “espirituais” como por partidários da família Colonna, que começaram uma campanha sedevacantista dizendo aos quatro ventos que Celestino V continuava Papa, e Bonifácio VIII era um usurpador[2].

    A tentativa desses homens era simplesmente convencer o simplório Pedro de Morrone de que não perdera a tiara pontifícia, malgrado a sua cabal renúncia. Bonifácio VIII deu, então, o primeiro sinal do governante que seria: estando a Igreja em perigo de cindir-se por um cisma movido por algumas facções de fanáticos, ordenou prudencialmente a Morrone que não se afastasse dele, pois o velho eremita, influenciável que era, poderia servir às ambições dos Colonnas e dos radicais adeptos da pobreza absoluta. Nas palavras de Bartolomeu de Lucca, uma fonte coetânea, Morrone ficou retido num mosteiro “in custodia non quidem libera, honesta tamen” e o cronista Villani, outro autor contemporâneo, nos informa que o ex-Papa morreu “in cortese prigioni”.

    Pois muito bem, o velho Morrone, provavelmente com a ajuda dos “espirituais”, desobedecendo ao Papa fugiu do mosteiro com o propósito de encaminhar-se à Dalmácia ou à Grécia. Sabedor disto, Bonifácio VIII enviou emissários que, no meio do caminho, frustaram a fuga de Morrone e o conduziram ao Castelo Monte Fumore, onde ficou confinado “em honesta reclusão”, segundo Villoslada, levando uma vida contemplativa até falecer em 19 de maio de 1296.

    Neste ponto, Villoslada, Tosti e Mcbrien — os três historiadores que nos têm servido como fio condutor desta história — são unânimes: não possuem o menor crédito as absurdas lendas, inventadas pelos adversários de Bonifácio VIII logo após a morte de Morrone, de que o ex-Papa havia sido assassinado por ordem de Bonifácio, tendo o crânio partido ao meio ou perfurado com uma lâmina. Tais calúnias, como adiante veremos, foram fomentadas pelos sequazes de Felipe, o Belo, rei de França, ainda em vida de Bonifácio, mas também após sua morte, no mais escandaloso e infame julgamento post-mortem de que se tem notícia na história da Igreja.

    Quanto às supostas “condições terríveis”, que teriam sido impostas a Morrone, paira a mesmíssima sombra da detração contra Bonifácio — a sombra negra e irresponsável da calúnia. As coisas se passaram de outra forma. Luigi Tosti, baseando-se em diferentes testemunhas oculares que escreveram sobre a reclusão de Morrone no Castelo Monte Fumore (como por exemplo o cronista Giacomo Stefaneschi, biógrafo de Celestino V), relata que o idoso homem, acostumado à vida de penitência e jejum mesmo antes de ser Papa, impunha-se a si mesmo um rigor assombroso (como era, aliás, típico de alguns monges ligados aos espirituais, que chegavam ao paroxismo em suas penitências). Assim, nas palavras de Tosti, que culpa teria Bonifácio se o ex-Papa jejuava às vezes durante dois dias, mortificava-se fisicamente e dormia no chão, mesmo com sua avançada idade, por amor à penitência? E mais: a estreiteza da cela onde Morrone ficou — onde, segundo o relato das fontes primárias, cabiam apenas duas pessoas — foi exigência dele mesmo!

    Como se vê, são fábulas maléficas espalhadas por inimigos de Bonifácio VIII as histórias do “assassinato” de Pedro Morrone, ex-Celestino V. Mas com relação a este tópico vale ainda fazer a defesa do grande Bonifácio VIII no tocante aos motivos que o levaram a manter sob sua custódia o Papa que renunciara à suprema dignidade apostólica por conta própria. Eles têm a ver com a função que cabe aos Papas como governantes da Igreja até o final dos tempos, Igreja que é mestra, médica e juíza, como apontou-se acima. Têm a ver com a função daqueles a quem cabe julgar a moral e os costumes e zelar para que, no plano político, não surjam obstáculos à salvação das almas.

    A argumentação é simples: o perigo de cisma era mais do que evidente, pois, como diz Villoslada, a fúria desesperada dos “espirituais” franciscanos após a renúncia de Celestino V levou-os a uma campanha de difamação e calúnias contra um Papa como nunca houve até então em toda a história eclesiástica, e nem depois. Além de blasfêmias e sacrilégios, trataram a Bonifácio VIII como pseudo-Papa, herético, sodomita, satanista, etc., desorientando muitas cabeças e criando problemas de eclesiologia que só seriam resolvidos séculos depois. Nas palavras de Villoslada, esses homens “contribuiram para o desprestígio do Pontificado e alimentaram as primeiras fontes da [herética] doutrina conciliarista”.

    Ora, num cenário como este, levando em conta a fortíssima pressão destes inimigos da Igreja (alguns deles ligados à família dos Colonnas) e a patente debilidade do caráter de Pedro Morrone, Bonifácio VIII, ao mantê-lo confinado, evitou o que provavelmente seria um dos grandes cismas da história da Igreja — fomentado por um ódio insano travestido de virtudes.

    Refutadas, pois, as acusações (infelizmente, repetidas ainda hoje em alguns ambientes católicos) de que Bonifácio VIII seria um usurpador que adquiriu a tiara pontifícia graças a ardis políticos e, pior ainda, teria mandado assassinar o Papa anterior que renunciara, veremos no quarto texto desta série se procedem as acusações de que Bonifácio foi responsável pela ida do Papado a Avignon.

    Não chegamos nem à metade da história.
    ______________________

    1- Que Celestino V renunciou com plena liberdade, ou seja, por vontade própria, é fato indubitável, nas palavras de Ricardo Villoslada. O documento de abdicação, lido pelo Papa diante de todos os cardeais, não deixa a menor margem a dúvidas: “Ego Celestinus papa V, motus ex legitmis causis (...) sponte ac libere cedo papatui et expresse renuntio loco et dignitati, oneri et honori”. É certo que o escrupuloso Morrone aconselhou-se com os cardeais acerca de sua renúncia, entre eles o Cardeal Gaetani (futuro Bonifácio VIII), mas não há nenhuma fonte primária que insinue que Gaetani o tenha oprimido, coagido ou coisa que o valha. A bibliorafia arrolada por Villoslada em sua Historia de la Iglesia Católica é considerável.


    2- Um dos mais fanáticos e virulentos homens desta campanha foi Jacopone di Todi, que esperava ardentemente pelo “Papa angélico” (que acreditava ser Celestino V) e, com o seu talento poético, escreveu contra Bonifácio alguns dos mais odiosos panfletos (em prosa e em verso). Do Papa escreveu, por exemplo “Come la salamandra / vive dentro lo foco / cosi par che lo scandalo / te sie sollaz’ e joco /dell’anime redente / per che ti curi poco”.


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