Corpus Christi e sua solene procissão em Toledo
Na Idade Média, o Papa Urbano IV (1195 — 1264) instituiu a festa de Corpus Christi após o portentoso milagre eucarístico de Bolsena.
Agindo assim atendeu o apelo insistente de muitas almas que ardiam de devoção pelo Ssmo. Sacramento.
Esta festa, uma das mais solenes da Igreja, é marcada por grandes procissões eucarísticas, inclusive nos nossos tão conturbados dias de abandono da fé que a Igreja Católica ensina.
Apresentamos a seguir uma descrição por Felipe Barandiarán de uma das mais belas procissões nesta magna festa. Ela acontece todos os anos na cidade de Toledo (Espanha).
Muitos dos aspectos relatados pelo jornalista podem ser vistos no vídeo anexo.
A manhã está luminosa. Subo a pé, ofegante, as empinadas encostas de Toledo.
Deixei o carro embaixo, estacionado junto ao rio Tejo, pois se é tarefa difícil circular habitualmente pela cidade, no dia de Corpus Christi torna-se impossível.
As estreitas ruas do centro histórico estão impedidas, porque a cidade está situada no alto de uma pronunciada elevação, defendida pelo próprio rio e pelas muralhas medievais.
No caminho, vou me unindo a muitos outros toledanos ou visitantes que se apressam como eu para assistir à grandiosa procissão.
Embora os ventos de vulgaridade que varrem o mundo moderno tenham desterrado o bom costume de se vestir melhor nos domingos e dias de festa, em Toledo, hoje, todos ostentam suas melhores vestes.
E não há mulher que não estreie algo. Divirto-me ao ver as pessoas, encantadas, mostrando suas novidades em matéria de vestuário.
Ainda não cheguei à Praça de Zocodover, ao alto, centro nevrálgico desta pequena e imperial cidade, quando ouço uma salva de morteiros.
Ela indica que a Missa Pontifical terminou e que a procissão começa a sair da chamada Porta Plana da catedral.
As pessoas estão postadas ao longo de todo o percurso. Somente os participantes do cortejo — metade de Toledo — e alguns convidados puderam assistir ao ofício divino no interior do templo.
Restringindo-se às preces, imóvel, para deixar livre o caminho, a outra metade de Toledo aguarda impaciente.
A rua está salpicada de areia molhada e plantas odoríferas, e os balcões engalanados com ricos tecidos bordados, bandeiras, mantas coloridas, grinaldas, vasos e alegres cestos de flores.
Em sinal de respeito e para acolher o Santíssimo Sacramento, antigos toldos de lona branca, provenientes das confrarias de tecelões e de especialistas em sedas, cobrem as ruas, estendidos ao longo das casas.
Agora já pode ser vista, abrindo o cortejo, a cavalaria da Guarda Civil. Atrás, a banda de música desta corporação e os timbaleiros da Prefeitura.
Em seguida, ostentando uma vara da mesma altura da custódia do Santíssimo Sacramento, com a qual medira na véspera os espaços das ruas, para que nada impedisse o reluzimento do cortejo, vinha, vestido de negro, o mestre de cerimônias.
Segue-lhe a cruz processional do século XV, presente do Rei Afonso V de Portugal, o Africano.
Valendo-me de minha credencial de jornalista, avanço discretamente em sentido oposto ao da procissão, cujo percurso é coberto pelos cadetes da Academia de Infantaria, instituição protagonista da legendária defesa do Alcácer de Toledo, na guerra de 1936 contra o comunismo.
A procissão transcorre em duas filas paralelas, tendo ao centro os priores, capelães ou dignidades de cada irmandade, cada qual portando báculo, medalha ou algum elemento que o distingue dos restantes de seus membros, e precedidos pelo estandarte correspondente.
Passo junto à confraria dos Cultivadores de Hortelã. Logo vêm os meninos e as meninas que fizeram a Primeira Comunhão, os grupos de Apostolado Secular e da Adoração Eucarística Perpétua, mais de 20 Confrarias e Irmandades com seus pendões correspondentes, a Hospitalidade de Lourdes e as Ordens Terceiras.
Ao som de seus instrumentos, a banda de música da Prefeitura arranca lágrimas de emoção.
Continuo avançando. Quero chegar até a porta da Catedral. O espaço é exíguo. Fascina-me a maravilhosa simbiose entre cortejo e público estuante de vida, mas conservando a ordem com naturalidade.
Sucessivamente, passo pelas religiosas de vida apostólica, pelos Cavalheiros da Ordem de Malta, pelo Capítulo dos Cavalheiros Mozárabes e pelo do Santo Sepulcro, pelos Fidalgos de Illescas e os Cavalheiros de Corpus Christi, além de outros, que ostentam com galhardia suas cruzes distintivas nas capas.
Agora é a vez de passarem os seminaristas, o clero regular e secular, a Irmandade da Santa Caridade, a famosa Cruz de Mendoza, os acólitos e o Cabido Primado.
Estou felizmente diante da Catedral, junto à companhia militar perfilada para prestar honras ao Santíssimo Sacramento.
Das paredes externas do magnífico templo gótico, em cuja entrada sorri encantadora a famosa imagem de Nossa Senhora, La Virgen Blanca.
Da parede pendem 48 enormes tapetes flamengos com alegorias eucarísticas, datados do século XVII e confeccionados especialmente para esta festividade.
A famosa custódia toledana, encomendada pelo Cardeal Cisneros ao grande ourives do século XVI, Henrique de Arfe, está a ponto de cruzar o limiar da Porta Plana.
Sinto, em torno de mim, a respiração contida. Um emocionante silêncio precede a custódia do Santíssimo.
Sua aparição estala numa apoteose de aplausos, afogados pelo estrondo de salvas de 21 tiros de canhão (as mesmas devidas a um rei) e o repique dos sinos.
A formação militar saúda e a banda de música interpreta com força a Marcha Real. Através da nuvem de incenso que nos envolve, o Santíssimo Sacramento avança lentamente. Deus está aqui!
A rica custódia gótica, de 183 quilos de prata e dezoito de ouro, é transportada numa carruagem florida sob a escolta dos cadetes da Academia de Infantaria.
Atrás, na segunda parte da procissão, vêm as máximas representações: o Arcebispo-primaz de Toledo com seu séquito, as autoridades regionais e provinciais, o prefeito da cidade acompanhado de seu gabinete, e o corpo docente universitário.
Encerrando o cortejo, desfila a Companhia de Honras da Academia de Infantaria com sua bandeira e banda de música.
Diante de um pequeno palanque montado na Praça de Zocodover repleta de gente, a custódia se detém e um orador sacro pronuncia um sermão de exaltação eucarística.
Ao terminar, acompanhando a procissão de regresso à catedral, a multidão entoa com devoção o popular hino de adoração ao Santíssimo:
“Cantemos ao Amor dos amores, cantemos ao Senhor. Deus está aqui! Vinde, adoradores; adoremos a Cristo Redentor.
“Glória a Cristo Jesus! Céus e Terra, bendizei ao Senhor. Louvor e glória a Ti, ó Rei da glória; Amor para sempre a Ti, Deus de amor!”
Se o sol de Toledo ilumina de verdade, mais do que ele resplandece e ofusca, elevado na custódia, o Santíssimo ao passar pelas suas ruas.
Orações e milagres medievais: Corpus Christi e sua solene procissão em Toledo
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