Duns Scot: o ancestral da modernidade
Sidney Silveira
No século XIV, o frade franciscano Duns Scot refunda a metafísica, ao adotar critérios tão inovadores, tão sutilmente contrapostos à metafísica clássica (refiro-me, sobretudo, à aristotélica e à tomista), que na verdade parece tratar-se de outra ciência. Quem o diz não sou eu, mas o professor emérito da Universidade de Bonn, Ludger Honnefelder — um dos maiores e mais respeitados estudiosos da obra de Duns Scot nas últimas décadas, no cenário internacional.
Em seu conjunto, essa “refundação” scotista abriu, a meu ver, os seguintes flancos para os pensadores dos séculos seguintes:
> Intuicionismo em gnosiologia. Uma das teses de Duns Scot é de que, no estado de natureza instituída por Deus (ou seja, o estado adâmico), o homem conhecia os inteligíveis diretamente, numa espécie de clara visão das essências. Sendo capax totius entis, o intelecto teria — inscrita entre as suas possibilidades metafísicas — a intuição direta dos inteligíveis. E mais: ainda de acordo com o Doutor Sutil, o homem voltará a ter esse tipo de cognitio intuitiva no estado de bem-aventurança — na visão beatífica. Ora, retire-se daí a premissa teológica, e cairemos na tese husserliana de que conhecemos a essência dos entes por intuição direta. Como se fôramos anjos... Curiosamente, ao propor a estrita separação entre teologia e metafísica (e, conseqüentemente, gnosiologia), Scot parte de uma concepção, ou melhor, de uma pressuposição... teológica! Veremos isto mais abaixo.
> Criticismo, ainda em gnosiologia. A tediosa multiplicação ad infinitum das distinções de razão — tão característica da obra de Scot e que influenciou boa parte dos filósofos posteriores, ainda no século XIV —, com o tempo não poderia levar senão a teorias “criticistas” do conhecimento, teorias as mais anti-realistas, como se frisa no tópico seguinte. Não é demais lembrar que, de acordo com o Doutor Sutil, a inteligência do homem, no atual estado de natureza caída, foi dramaticamente danificada, a ponto de ele dizer (como bem destaca Gérard Sondag, na interessante introdução ao livro Duns Scot – L’Image) que a alma racional está, atualmente, em status naturae lapsae. Como se vê, não estamos muito distantes da visão protestante, luterana, que afirma o seguinte: com o pecado original, a inteligência e a vontade foram essencialmente danificadas. A propósito, que Lutero tenha sido um estudioso da obra de Ockham (a quem chamava, segundo alguns biógrafos, de “meu mestre”) e da de Duns Scot, é algo sabido de todos.
> Idealismo, ainda em gnosiologia. A problematização do acesso da inteligência às coisas (ainda que sob a pressuposição de que isto ocorre apenas no atual estado, de natureza decaída pelo pecado) ganhará novos contornos, com a tese nominalista de que o universal é “criação” conceitual da mente sem correspondência com a unidade real de um objeto concreto. Idéia e realidade são, aqui, paralelas que jamais se encontram, ou, se se encontram, é por uma representação formal que não necessariamente deságua no ente real, ou melhor: prescinde dele. Afinal, a existência não é a razão dos objetos, não é o que os distingue enquanto objetos (existentia non est per se ratio objecti — cfme. Quodlibet, VII, 8-9). Antes do objeto existente, considera-se a possibilidade do existir; ademais a existência contingente não afeta a essência do objeto. Essa possibilidade formal é, pois, a nota distintiva da metafísica de Scot, uma metafísica do possível, a qual culminará na teoria dos compossíveis de Leibniz, de acordo com J. Carrascoso.
Com a distinção formal (distinctio formalis) — espécie intermediária entre a distinção real e a distinção de razão —, Duns Scot cria a ferramenta sem a qual a filosofia moderna não teria sido possível, de acordo com Valentín Polanco, em seu belo estudo sobre os antecedentes tardo-medievais do criticismo kantiano. Em resumo, a tese prega que duas coisas podem ser formalmente distintas sem ser realmente distintas, nem tampouco racionalmente distintas. Trata-se de um terceiro âmbito da realidade, intermediário entre o racional e o real. “Se a eqüinidade é eqüinidade”, diz Scot parafraseando a Avicena, “é porque a eqüinidade é” — e este é, aqui, não significa uma existência real nem, propriamente, uma existência de razão. Tudo isso conduz à idéia de pluraridade de formas essenciais (distintas e superpostas) em uma só substância individual: assim, a minha humanidade é, a minha corporeidade é, a minha animalidade é, a minha racionalidade é, etc. Haveria, portanto, uma verdadeira legião em cada um de nós — ao modo de substratos metafísicos.
Em suma, de maneira análoga ao que acontece com a fenomenologia de Husserl, as essências, em sua pura formalidade, são o objeto da metafísica scotista — formalidade essa que “superaria” a realidade contingente (ou seja: o real existente). Assim, se algo possui a capacidade de gerar vários conceitos, todos “pertencentes” à coisa na medida em que revelam uma parte do que ela é, tais distinções devem ter uma actualitas específica... Nas conhecidas palavras de Scot, “a toda entidade formalmente distinta corresponde adequadamente um ser real”. Dessa sutil espécie de petitio principiis apropriar-se-á Descartes, na Sexta Meditação*.
O fato é que, a partir de tais premissas (com a inserção de uma terceira realidade: a formal), o conhecimento não mais poderá ser explicado como uma relação direta entre o pensamento e a coisa, entre um sujeito e um objeto (real ou de razão). Entra em jogo a representação — que é para Scot como uma realidade real intermédia entre a coisa e o pensamento, entre o ente real e o de razão: esse objectivum, ser ou realidade objetiva com a qual se inaugura no Ocidente a gnosiologia apoiada na natureza ideal dos objetos do conhecimento (e não nos entes reais). Neste panorama, conhecer, ou seja, alcançar uma verdade, será uma de duas: ou a identidade entre o sujeito e a representação, ou a identidade entre a representação e a coisa, mas nunca, jamais, a adequação entre o intelecto e a coisa, como diz o já citado Valentín Polanco**. Em suma, fundamentalmente, conhecemos não a coisa real — de cuja essência nos apropriamos por abstração de suas qüididades materiais —, mas a nossa representação da coisa, apenas.
Não é preciso ser um Doutor Sutil para verificar que, com esta tese, conhecer tornou-se algo mais difícil, mais complexo, mais problemático.
> Univocismo em metafísica. Deste tópico, trataremos noutra oportunidade.
> Voluntarismo em psicologia e/ou antropologia. Para Duns Scot, a vontade autodetermina-se, ou seja: não conhece amarras, por ser absolutamente livre. Ela não tem causa anterior e, portanto, é causa sui. Ela é também a faculdade mais nobre da alma, em certo sentido muito superior ao entendimento. A vontade sempre pode abster-se de querer — pode, inclusive, não querer o Sumo Bem. Há mais: o homem pode querer o mal enquanto mal — e até mesmo a alma de Cristo, por enquadrar-se em tal conceito de liberdade humana, pode pecar***, assim como também o pode a alma dos bem-aventurados, no céu. Tinha razão Leonardo Polo (de quem sou insuspeito para falar, pois o considero altamente problemático) ao dizer que a supervalorização da vontade, que começa em Scot, abre caminho para a quimera da auto-realização das vontades individuais — um dos ideais do pensamento moderno. Ideal anticristão, diga-se, na medida em que abole a noção de sacrifício para alcançar-se a perfeita felicidade. Ao homem — inclusive o cristão —, bastar-lhe-á a liberdade para ser “feliz”, e não a posse objetiva do Sumo Bem.
> Separação entre fé e razão. Duns Scot traça uma rígida e intransponível linha divisória entre o conhecimento estritamente racional e o conhecimento a que a razão pode chegar sob a luz da fé (sub lumine fidei). Ele distingue a filosofia primeira, que tem como objeto o ente segundo a entidade (entis secundum suam entitatem), da teologia ou ciência dos beatos (scientia beatorum), que estuda Deus a partir da Revelação, e que é chamada por Scot de “nossa teologia” (theologia nostra) — que o Doutor Sutil não classifica como ciência (a meu ver, por não aplicar a ela a distinção tomista entre evidência quoad se e evidência quoad nos). Perde-se, aqui, a noção de que a filosofia é “serva da teologia” (ancilla theologiae), já que se trata não de dois conhecimentos complementares e harmônicos (sendo a filosofia subalternada em relação à teologia, como em Santo Tomás), mas estanques, independentes um do outro.
A partir daí, a história da filosofia mostra muito bem qual foi a senda aberta com a “refundação” scotista — sobretudo com a separação entre teologia e metafísica: crescente afastamento entre fé e razão (a primeira logo cairá no pietismo de vários tipos, já que Deus deixará de ser objeto do escrutínio da razão, e a segunda soçobrará no racionalismo de variados matizes); esvaziamento paulatino da metafísica, até a sua “destruição” em Kant e, logo depois, queda nos materialismos os mais abstrusos, ainda no século XIX (talvez o mais antimetafísico de toda a história da filosofia).
O irônico de tudo isso é que Scot, tão cioso de separar essas duas ordens de saberes, baseia a sua gnosiologia — e parte de sua metafísica — numa pressuposição teológica: a de que a natureza do homem conhece três estados:
· o estado da natureza instituída originalmente por Deus;
· o estado da natureza decaída pelo pecado original;
· o estado da natureza restaurada dos bem-aventurados.
Em síntese, é na consideração desses três estados (na verdade, uma pressuposição para a qual não há a mais remota evidência, no que tange às operações da inteligência no primeiro e no último estágios) que a teoria do conhecimento de Scot se fundamenta, da seguinte forma: intuição direta dos inteligíveis no estado adâmico original e também no de bem-aventurança final, e corrupção quase que essencial da inteligência no atual momento, de status naturae lapsae. Mas aqui vale perguntar: já que se trata de ordens tão essencialmente distintas de conhecimento, não teria o Doutor Sutil de buscar os princípios de sua gnosiologia em premissas não-teológicas? Em alguma evidência? Nesse sentido, a gnosiologia aristotélica é, sem dúvida, muito mais realista.
Hoje, estudos sérios em vários países apontam-nos as grandes afinidades entre as obras de Scot e Descartes, Scot e Leibniz, Scot e Hobbes, Scot e Spinoza, Scot e C. Wolf, Scot e Kant, Scot e Hegel, Scot e Brentano, Scot e Pierce, Scot e Husserl, Scot e Heidegger (que sobre o pensador medieval escreveu uma tese), Scot e Wittgenstein, Scot e Xavier Zubiri (aqui, refiro-me, particularmente, à tese zubiriana da “transubstantivação” do corpo de Cristo e do pão na Eucaristia, à qual Zubiri parece inspirado pelo fato de Scot, de acordo com vários scotistas, não enxergar uma razão teológica forçosa para a tese da transubstanciação, embora a aceitasse por ser uma verdade fé comum de toda a Igreja); etc. Estamos, pois, diante do grande ancestral da modernidade, autor que antecipa várias problemáticas, vários questionamentos típicos do fragmentário pensar moderno, um pensar subjetivista, imanentista, intuicionista, voluntarista e predominantemente materialista.
Por fim, vale consignar outra coisa: na teologia vêem-se também similitudes entre proposições de Scot e as de autores modernos e/ou contemporâneos, como, por exemplo, Maurice Blondel — para quem chegamos à verdade do catolicismo mais com a vontade do que com a inteligência —, Henri de Lubac, Urs Von Balthazar (aquele para quem o inferno está cheio de pecados, mas não de pecadores), etc. Se isto é bom para o catolicismo, penso que a atual crise doutrinal da Igreja (uma babel de correntes teológicas contrapostas) dá uma resposta definitiva.
Prossigamos apenas com mais um exemplo (entre incontáveis que poderíamos consignar): como não ver uma grande semelhança entre a tese de Blondel de que o sobrenatural é uma exigência da natureza humana e as idéias scotistas de que a distinção entre natural e sobrenatural é contingente (pois depende apenas da vontade divina) e de que o homem está ordenado naturalmente ao sobrenatural (cfme. Ordinatio, Prologus, I, 23)? Ou então com a tese scotista de que nenhum conhecimento é sobrenatural, nem mesmo a visão beatífica (“...non est cognitio aliqua supernaturalis, nec visio Dei”, cfme. Lectura, Prologus, p. 1, q. un., p.12, n: 32)?
De tudo fica-nos uma lição. Por mais sutil e engenhosa que seja uma filosofia, por mais brilhante e repleta de pensamentos surpreendentes que seja, por mais que a sua estrutura lógica intrínseca seja perfeita, o fato é que pode, sim, afastar-se (e afastar-nos) das verdades mais fundamentais.
* Diz Descartes: (...) basta-me poder conceber clara e distintamente uma coisa sem outra para estar seguro de que uma é distinta da outra, já que (...) podem dar-se separadamente”.
** A partir dessas premissas de Scot, será possível conceber um ato de conhecimento cuja causa não seja o objeto, ou mais: um conhecimento cuja verdade expressa seja por completo independente da realidade do objeto. Aqui vemos o parentesco com alguns tipos de filosofias da linguagem.
*** Cfme. Reportata Paris., III, 12, I, n:2. Poupo-me de trazer uma avalanche de citações do Magistério afirmando que tal opinião inconcebível é herética (Concílios de Éfeso, Calcedônia, Florença, Constantinopla [II], etc). E, como assinala argutamente Santiago Ramírez, a tese scotista da pecabilidade de Cristo é caudatária da sua idéia — compartilhada por Suárez — de que a união hipostática se dá por justaposição extrínseca, na qual a natureza humana não chega a ter mesma subsistência do Verbo divino, pois uma natureza assumida pelo Verbo, para Scot, seria uma espécie de “não-pessoa”. Que diferença para Santo Tomás! Este afirma categoricamente (junto com o Magistério!), que Cristo, pessoa humana e divina, não apenas não pecou, como jamais poderia ter havido nele a fomes peccati, já que a Graça superabunda em sua alma como algo sumamente perfeito. Em suma: Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, é ABSOLUTAMENTE IMPECÁVEL (Cfme. Suma Teológica, III, q. 14-15). Outras teses, no mínimo heterodoxas, de Scot: Cristo, enquanto homem, pode dizer-se também filho adotivo (como nós); as ações humanas de Cristo têm um valor apenas extrinsecamente infinito; Cristo teria encarnado independentemente do pecado de Adão, porque a união hipostática é, para Scot, um bem maior que a glória das criaturas (mas há, aqui, relação real e conseqüente entre a premissa e a conclusão?); os sacramentos não são causa instrumental da Graça; etc.
Em tempo1: Vejam-se aqui e aqui duas versões latinas das obras de Scot, uma delas numa copiosa edição em doze volumes, em flip book.
Em tempo2: Sei que estamos mexendo num vespeiro. Afinal, Scot foi beatificado por João Paulo II e está prestes a ser canonizado, apesar de ter defendido idéias tão contrárias ao Magistério (a de que a alma de Cristo é "pecável" é, tão-somente, uma delas). Na verdade, talvez seja um recorde absoluto: eu, particularmente, não me lembro de um santo cuja canonização tenha demorado 700 anos (nem mesmo Joana D’Arc; corrijam-me se estiver errado). Além do mais, muitos scotistas têm por hábito dizer que acentuar as divergências entre Santo Tomás e Duns Scot é algo anacrônico, fora de moda. E talvez o seja mesmo, dentro da universidade (e, aqui, entra a minha crítica ao fato de o tomismo ter-se academicizado por demais e, com isto, jogado para debaixo do tapete a defesa da fé). Mas fora, em locais distantes dos departamentos de filosofia — já que estes precisam obedecer a grades curriculares, muitas vezes, limitadoras — e de alguns institutos de teologia, ainda se pratica um tomismo da melhor cepa, como por exemplo o dos dominicanos contemplativos de Avrillé, responsáveis pela estupenda revista Le sel de la terre.
Entre scotistas encontram-se também alguns dos mais entusiásticos defensores do atual pluralismo teológico; alguns dos maiores defensores de Lutero e de sua “reforma”; alguns dos maiores críticos da Contra-Reforma e do Concílio de Trento; alguns dos maiores críticos da autoridade — monárquica — do Papa (pregam inclusive a democratização total e definitiva do Magistério); alguns dos grandes defensores da tese de que o Magistério da Igreja está circunscrito ao tempo histórico e, portanto, os ensinamentos e o exercício de sua autoridade estão temporalmente condicionados; alguns dos maiores pregadores de um ecumenismo radical que, a pretexto de diálogo, é capaz de “refundar” não a metafísica, mas a religião católica, que nesse ambiente não tem como ser verdadeiramente apostólica nem Arca da Salvação, mas apenas uma dentre tantas outras “religiões”.
Nessas horas, dou graças a Deus por estarmos “fora” da Academia, eu e o Nougué.
http://contraimpugnantes.blogspot.com/
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