O alcance das leis más
Ao desembargador Ricardo Dip
Sidney Silveira
Desde Aristóteles, sabemos que a lei é um dos princípios extrínsecos da vida moral do homem. Sua pedagogia não é outra senão orientar a coletividade ao bem comum, esteio da paz social, e fazê-la minimamente discernir o seu valor. Mas, para tanto, a lei precisa ser boa em essência, ou seja: deve tratar-se duma regra da razão prática que ordena as ações humanas ao bem. Ora, qualquer regra genuína necessita de um princípio que sirva de medida para o universo das coisas de que trata — assim como, de maneira análoga, a unidade é princípio da numeração e o primeiro movimento é princípio dos que se lhe seguem. No caso do homem, tal medida reitora do bem chama-se, em sentido lato, "razão".
Vamos a um exemplo extraído duma prosaica situação em que a norma legislativa acaba por induzir ações moralmente más. Certa vez, andava eu de metrô aqui no Rio, coisa que não fazia há tempos. No trajeto entre a estação onde peguei o trem e a seguinte, todos ouviram a aveludada voz duma jovem a transmitir o seguinte enunciado pelos alto-falantes:
“Os assentos de cor laranja são preferencialmente destinados a idosos, gestantes, pessoas acompanhadas de crianças com até cinco anos de idade e deficientes físicos”.[1]
De imediato, o absurdo da proposição feriu-me os ouvidos. Na verdade, se a norma — ancorada numa decisão de nossa pândega Câmara dos Vereadores — quisesse ser justa e ensinar algo, a frase deveria ser: “TODOS OS ASSENTOS são preferencialmente destinados a idosos, gestantes, etc.” Mais ou menos como acontecia no tempo em que o grau de civilidade predominante fazia as pessoas espontaneamente cederem os seus lugares a idosos e gestantes nos transportes coletivos, sem que lei nenhuma lhes apontasse o cumprimento deste dever moral. A propósito, o presente texto não se destina a demonstrar a tragédia que é o Estado se meter a este ponto nas relações interpessoais, e ademais fazê-lo deseducando as pessoas.
Naquela ocasião, logo pude aferir o resultado prático da tal norma, duas estações adiante: como os assentos de cor laranja estivessem todos ocupados por idosos, adentrou o vagão onde eu estava uma gestante — e ninguém, ninguém foi capaz de lhe ceder o lugar, pois os demais assentos, de acordo com os pressupostos da funesta lei da municipalidade carioca, não são preferencialmente destinados a estas pessoas. Estava eu de pé e cutuquei uma jovem que subitamente fingiu dormir, com o intuito de ver se a criatura cedia lugar à grávida. Mas o conveniente sono da má-criação é profundo, sobretudo quando tem a lei como maior cúmplice.
No Brasil, boçais politicamente engajados sequer conseguem entender a distinção fundamental entre lei (ditame da razão prática), direito (ars boni et aequi, a qual traz sempre consigo o pressuposto do justo natural) e justiça (virtude moral e social), porém cerram rumorosas fileiras na defesa de teses fundantes do caos contemporâneo, com apoio financeiro e político de um governo mancomunado com as elites globalistas. Não por outro motivo, multiplicam-se ao infinito os “direitos”, pulveriza-se completamente a noção de deveres, ao passo que a idéia de justiça simplesmente desaparece — no turbilhão de normas e regras que de leis, ou seja, de propriamente legislativas, guardam apenas certo invólucro semântico.
Quando Tomás de Aquino indaga, na Suma Teológica, se o efeito comum da lei é tornar os homens bons (utrum effectus legis sit facere homines bonos), a resposta afirmativa às objeções é simples e objetiva — sempre a partir do pressuposto de que uma lei tirânica, por não ser conforme a razão, não é propriamente lei, mas perversão da lei. Em síntese: é impossível que o indivíduo seja bom se não guarda certa proporção com o bem comum da cidade onde vive.
Ora, sendo o bem comum o principal fim da lei, torna-se evidente que as verdadeiras leis têm o condão de melhorar os atos humanos. De que maneira? Entre outras coisas proibindo e castigando o mal e, por conseguinte, induzindo os homens ao bem.
A nossa equidistância cósmica deste princípio elementar define o atual padrão civilizacional em que jazemos, no qual maldades de todos os tipos vão sendo prescritas nas leis positivas.
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1- Depois o politicamente correto gerou a semanticamente monstruosa expressão “portadores de necessidades especiais”, que pode dizer tudo ou nada.
Contra Impugnantes
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