Processo de conformação das fronteiras da Capitania de Minas Gerais
Resumo: O que propõe a presente pesquisa é conhecer o processo de delineamento dos limites da Capitania de Minas Gerais em relação às capitanias vizinhas, investigando, temporalmente, a mobilidade de suas fronteiras; compreender o lento processo de conformação das Minas Gerais e os conflitos sociais inerentes a ele e a construção da capitania a partir dos movimentos de ocupação de suas terras, seja em relação aos centros urbanos, seja em relação aos sertões, evidenciando as disputas em torno da apropriação e defesa de determinados espaços.
Para tanto, recorreu-se a fontes diversas: a cartografia coeva, diários de viagem, cartas e decretos régios e outros registros produzidos na América portuguesa e em Portugal continental, bem como a extensa bibliografia sobre o século do ouro mineiro, especialmente relativas aos processos de ocupação, povoamento, controle real e urbanização das Minas.
INTRODUÇÃO
O objetivo do presente artigo é discutir o processo de delineamento dos limites da Capitania de Minas Gerais, confrontando-o com as estratégias e instrumentos utilizados pela Coroa portuguesa para o controle da circulação de pessoas e mercadorias, bem como com os diversos conflitos envolvidos: entre autoridades, Capitanias e/ou entre particulares que, paralelamente ao processo de espraiamento da empresa colonial pelos sertões da América, procuravam garantir privilégios e minimizar possíveis perdas decorrentes da expansão do raio de ação da burocracia portuguesa.
Para tanto, recorreu-se a fontes diversas: a cartografia coeva, diários de viagem, cartas e decretos régios e outros registros produzidos na América portuguesa e em Portugal continental, bem como a extensa bibliografia sobre o século do ouro mineiro, especialmente relativas aos processos de ocupação, povoamento, controle real e urbanização das Minas.
A CONFORMAÇÃO DO TERRITÓRIOii MINEIRO
Razão de inúmeras querelas ao longo dos séculos XVIII e XIX, a indefinição das fronteiras de Minas Gerais evidenciou-se desde o momento de sua criação como capitania independente. Se tomarmos como pressuposto que à questão da delimitação dos contornos de Minas Gerais são indissociáveis as disputas entre as capitanias circunvizinhas estabelecidas até 1720 (Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco) pela definição das áreas de jurisdição que caberia a cada uma delas, podemos afirmar que a problemática aqui discutida remonta aos primeiros anos da exploração dos territórios que posteriormente configurariam a capitania do ouroiii.
O alvará régio de 02 de dezembro de 1720, que estabelecia a criação da capitania do ouro, não fez mais que tratar superficialmente da questão das linhas divisórias entre os territórios de Minas Gerais e São Paulo, que até então constituíam um só governo, restringindo-se a indicar “por limites no sertão pela parte que confina com o governo das Minas os mesmos confins que tem a comarca da Ouvidoria de São Paulo com a comarca da Ouvidoria do Rio das Mortes” iv.
A divisa entre as ouvidorias a que o documento faz menção era a serra da Mantiqueira que, já em 1714, no Termo de repartição das comarcas da região das minas, foi evidenciada como o marco divisor entre as vilas de São João del Rei e Guaratinguetáv.
Ordem régia de 22 de abril de 1722vi confirmou os limites da Comarca do Rio das Mortes com a Capitania de São Paulo. Não obstante, a confusão permaneceu, visto que os critérios assinalados não eram claros.
Assim constava: “que a terra que está devoluta entre os dous governos se devia igualmente por distância imaginária lançada pellos rumos evitando as contendas entre os dous governadores e Ouvidores Geraes” vii.
Não obstante o estabelecido em 1722, a confusão permaneceu, visto que os critérios assinalados não eram claros. Assim constava: “que a terra que está devoluta entre os dous governos se devia igualmente por distância imaginária lançada pellos rumos evitando as contendas entre os dous governadores e Ouvidores Geraes” viii.
Por carta régia de 23 de fevereiro de 1732, o governador de São Paulo, Antônio Caldeira da Silva Pimentel, conseguiu do rei ordem para que os limites entre esta capitania e a de Minas Gerais fossem remarcadas. Em virtude disso, D. Luís de Mascarenhas, sucessor de Caldeira, oficiou ao governo de Minas, reclamando o dito ajuste. O governador da Capitania de Minas, Conde de Galvêias (1732-35), contudo, ignorou o ofício, visto que uma eventual redução dos territórios sob sua jurisdição, entre outras coisas, acarretaria a diminuição da população total sujeita à cobrança do imposto do Quintoix.
A ordem de 1732, portanto, não trouxe teve resultados práticosx.
Em meados da década de 1740 seguiram outros conflitos. Vejamos o caso da Campanha do Rio Verde.
Sob o argumento de que teriam sido eles os primeiros povoadores da região, os paulistas invocavam então o direito de posse sobre a região. Diante das ameaças representadas pelo governo paulista, em 1743 o Juiz Ordinário e Oficiais da Câmara de São João del-Rei foram para o arraial, “onde se lavrou um auto de posse, em vistas das pretensões de um Bartolomeu Correia Bueno, que se havia introduzido a usurpa-lhes as suas funções, dizem que com ordem do (...) governador de São Paulo”xi.
A este, seguiram-se outros conflitos. Fato é que os embates com a capitania de São Paulo persistiram ao longo da maior parte do século XVIII.A dominação sobre as terras meridionais do território mineiro era particularmente importante: durante a segunda metade do século XVIII, a Comarca do Rio das Mortes era a segunda em população – sendo superada somente pela de Vila Rica – e, além disso, figurava como uma região bastante prósperaxii.
No que tange às outras capitanias limítrofes, a situação não foi diferente daquela observada em relação a São Paulo: a falta ou a imprecisão das informações acerca dos limites oeste, norte e leste da capitania de Minas Gerais eram patentes, especialmente durante a primeira metade do setecentos.
Ao norte, há notícias de um croqui utilizado pelo governador da capitania D. Lourenço de Almeida (1721-32), por volta de 1722, para estabelecer tais limites, definidos pelo rio Verde, com a Capitania da Bahia e pelo Carinhanha, com a de Pernambuco.
Realizado por um dos chamados homens práticos do sertão, este documento foi enviado por D. Lourenço de Almeida em 1722, para que fosse tornado público e servisse para o estabelecimento dos limites entre as capitanias, o que já havia sido tentado por Assumar a partir do mesmo mapaxiii.
A situação dos limites entre a Bahia e Minas remonta a fins do século XVII, quando várias sesmarias foram concedidas pelo Governo da Bahia, abrangendo áreas de toda a porção leste do rio São Franciscoxiv.
Na segunda metade do setecentos esses embates ganharam notoriedade com a disputa do território da Vila de Nossa Senhora do Bom Sucesso das Minas Novas, fundada em 02 de outubro de 1730. Sujeita judicialmente a Comarca do Serro Frio, a vila estava, contudo, sujeita militarmente e administrativamente ao governo da Capitania da Bahiaxv.
Com a instalação da Comarca de Jacobina, nesta última, ficou à ela submetida até 1757, quando foi incorporada à Capitania de Minas Gerais. Todavia, em razão de dúvidas de interpretação levantadas pelo ouvidor de Jacobina (Bahia), estendeu-se a contenda entre as duas capitanias até que, por Carta régia de 28 de agosto de 1760, foi declarada a subordinação da vila à Comarca do Serro Frioxvi.
Não obstante a decisão de agosto de 1760, cinco anos mais tarde os moradores de Bom Sucesso das Minas Novas do Araçuaí reclamavam a sua vinculação à Capitania de Minas, desejosos que a vila fosse novamente incorporada à capitania da Bahia, o que julgaram ser- lhes mais favorávelxvii.
Este caso nos aponta uma outra variante importante no estudo dos litígios fronteiriços da América portuguesa: os interesses particulares envolvidos. Essa investigação se faz necessária na medida em que, embora decisivos, a documentação e os desígnios oficiais não conseguem dar conta da totalidade dos processos.
Pertencer ou não ao governo das Minas implicava, entre outras coisas, uma maior vigilância das autoridades metropolitanas - dado o cuidado com que se buscava controlar o trânsito das riquezas extraídas/produzidas na capitania - e estar submisso a um sistema fiscal mais rigoroso.
Quanto às fronteiras a oeste, estas também figuravam imprecisas. Relatos setecentistasxviii chamam a atenção para o parco povoamento da região e a insegurança de seus caminhos, repletos de gentio bravo, quilombolas e salteadores que, segundo as crônicas, deixavam a região sob um clima de constante insegurança.
Característica que não se restringia às raias oeste da capitania, pois eram freqüentes as reclamações sobre a ação de elementos facinorosos também em outras partes das Minasxix:
Em cartas de 1718xx e 1719xxi, o então governador da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, D. Pedro de Almeida (1717-21), chamava a atenção para isso. Discutia principalmente os perigos representados pelos quilombolas que viviam próximos às cidades mineradoras.
Na primeira correspondência, ele afirma que os negros fugidos infestavam as estradas e cometiam diversos crimes, em prejuízo de viajantes e moradores de sítios e roças vizinhos às vilas, levando das casas não só ouro e mantimentos, mas coisas de menor importância, “porque para tudo toma lugar o seu atrevimento, juntando se em quadrilhas de vinte e trinta e quarenta armados e defendidos das armas, como que fogem aos seus senhores e que apanhão aos passageiros.”
Nas duas cartas, Assumar chama a atenção para a gravidade do problema, sugerindo ao rei que medidas enérgicas fossem tomadas no castigo dos negros que andavam praticando crimes nas estradas mineiras.
Por outro lado, ressalta as dificuldades de dar punição a esses elementos, dado que seus senhores, na iminência de perderem sua posse – qual seja, o próprio escravo – para a Justiça, preferiam acobertar os delitos cometidos.
Ainda sobre as correspondências do Conde de Assumar, elas nos colocam uma outra questão importante, especialmente na pesquisa sobre o avanço do povoamento dos territórios mineiros e, paralelo a isso, o movimento de alargamento das estruturas de poder metropolitanas: até que ponto é válido, para o século XVIII mineiro, associar a ordem aos espaços urbanos e a desordem, o tumulto, a indisciplina, aos sertões?
Embora seja latente que o avanço dos aparatos metropolitanos sobre os territórios conquistados signifique um maior controle sobre as populações dos confins da capitania, cabe aqui, diante dos inúmeros exemplos da instabilidade política dos principais centros mineiros, ao menos problematizar este tipo de classificaçãoxxii.
Retomando a problemática da fronteira oeste da capitania, foi só na segunda metade do século XVIII, com o avanço do povoamento, o florescimento de vilas e uma maior efetivação dos aparatos metropolitanos sobre as zonas periféricas das Minas Gerais é que as linhas fronteiriças com o governo de Goiásxxiii foram mais bem delimitadas, não sem brigas.
A título de exemplo, vejamos o caso da Vila de São Bento do Tamanduá. Após sua criação, em 1789, foi esta Câmara que representou mais nitidamente os interesses territoriais da Capitania de Minas nas bandas ocidentais.
Em 1793, foi enviada uma extensa carta à rainha D. Maria I reclamando a usurpação de territórios pela capitania de Goiás. O documento acusava o governo da capitania vizinha de arbitrariedades e de agir em prejuízo dos interesses reais. Os camaristas de Tamanduá buscaram ainda associar as terras sob jurisdição goiana a adjetivos depreciadores, como desordem e violência, além de caracterizar esses espaços como de trânsito livre de ladrões, quilombolas e de toda sorte de facinorososxxiv.
A lista de argumentos desenvolvidos pelos camaristas de Tamanduá a fim de convencer a rainha sobre a justeza de sua causa é grande. Segundo eles, a conquista e o povoamento da região em disputa haviam sido realizados por mineiros; acertos territoriais da década de 1730 e 1740 haviam confirmado a posse destas terras ao governo de Minas; os caminhos de Goiás, pela falta de fiscalização e descuido das autoridades desta capitania, eram propícios ao contrabando do ouro; os vassalos goianos eram infiéis.
O repertório argumentativo certamente não se esgota aqui. De qualquer maneira, mais importante que enumerar à exaustão essa tipologia, é perceber a multiplicidade de fatores envolvidos nas disputas pela definição das fronteiras da capitania.
Argumentos de ordem histórica, jurídica ou que tentam mensurar o nível de fidelidade de certos grupos em relação ao rei compõem este complexo jogo de forças e interesses.
Passados cinco anos, outra carta foi enviada pela Câmara de São Bento do Tamanduá, em dezembro de 1798xxv. Mais sucinta que anterior, ela guardava, contudo, as mesmas bases da precedente. Repetia alguns dos argumentos já expostos, reiterava a indisposição existente entre os governos das capitanias de Minas Gerais e Goiás quanto à delimitação de suas fronteiras e pedia à rainha que interviesse para a resolução do problema.
Mas não fora o século XVIII suficiente para a resolução dos problemas de fronteira entre as duas capitanias. Somente em 1816 foi resolvida a questão da divisa com Goiás, com a incorporação do sertão entre os rios Grande e Paranaíba, região hoje conhecida como Triângulo Mineiro, que deu à Capitania a sua configuração definitiva e o seu contorno característico.
Por alvará de 04 abril do mesmo ano, D. João VI determinava que a Campanha do Araxá – Julgados e Freguesias de São Domingos e Desemboque – fosse desanexada à Capitania de Goiás e incorporada a de Minas Gerais, especificamente à Comarca de Paracatu, criada no ano anterior.
As justificativas apresentadas para tal mudançaxxviii relacionavam-se às dificuldades dos moradores da dita região no acesso à Capitania e Comarca de Goiás – distante 150 léguas, segundo consta. Com a transferência, buscava-se assim minorar os incômodos e prejuízos dos habitantes da Campanha do Araxá quando precisassem recorrer aos reais serviços. Desse modo, comentava D. João, ficariam eles desobrigados a “desamparar as suas casas e cultura de suas terras, ficando também mais desembaraçados e promptos para se empregarem no meu real serviço”.
As razões expostas nas ordens régias que tratam dos litígios de fronteira nos oferecem, no mais das vezes, pistas sobre os fatores determinantes para a anexação (ou não) de certos termos à Minas Gerais, mas não podem as únicas fontes para nossa informação.
Vejamos o caso do Julgado do Desemboque: fundado em 1762, ele fora anexado à Capitania de Goiás com o apoio de parte da população local, interessada em escapar da tributação do imposto do Quintoxxx. Já em inícios do século XIX a situação difere um pouco, embora uma das preocupações dos moradores da Campanha do Araxá continue sendo a questão da tributação.
Segundo Cunha Matos, os habitantes dessa região reclamavam seu pertencimento a Goiás frente a obrigatoriedade do pagamento de 600 réis por cabeça de gado exportada, tributo que só tinha lugar nesta capitania, e não recaía sobre a população mineira.
Peça exemplar, o caso do Julgado do Desemboque reafirma a necessidade de ultrapassar os conteúdos oferecidos pela documentação oficial, especialmente das Ordens que representam o desfecho de longos processos e buscar, pela análise das estruturas particulares e dos meandros que compuseram o cenário destes litígios fronteiriços, os materiais que preencherão os silêncios e omissões das fontes.
Quanto à fronteira leste, esta permaneceu indefinida durante todo o período colonial. Região dominada por índios bravios, entre eles os temidos botocudos, seguiu considerada área de fronteira e semi-explorada até o século seguinte.
O temor em relação aos índios que habitavam estas partes pode ser detectado em algumas correspondências oficiais que tratavam das políticas de colonização das áreas de floresta do leste mineiro.
Em meio a projetos de abertura de estradas e de melhoria das vias de comunicação entre o território mineiro e o litoral, dentre outros, a preocupação com as “bárbaras raças de indios” é elemento recorrente.
Peça exemplar, carta régia de 1816 nos ajuda a melhor compreender essa situação:
Convindo muito a conclusão desta estrada até encontrar alguma já aberta e transitavel em a capitania de Minas, e bem assim que se haja de emprehender a abertura de muitas outras differentes estradas por todo o vasto sertão que separa as duas capitanias [Minas Gerais e Espírito Santo], afim de que possa ser reduzida a cultura; aproveitando-se ao mesmo tempo as riquezas que nella consta haverem, e que se acham até o presente fóra do alcance de meus vassallos pelos perigos a que se exporiam sendo accomettidos pela feroz e barbara raça dos indios botocudos, uma vez que não achassem por toda parte a Minha Real protecção, como aconteceram aos primeiros que lavravram as minas do Castello, e as cabeceiras do rio Itapemirim, pertencentes a esta capitania [Espírito Santo], a que foram obrigados a abandonar as quatro povoações que ali haviam, para, em proximidade da costa, e sobre o mesmo rio Itapemerim se estabelecerem com mais segurança: Tendo mostrado a experiencia que um dos melhores meios de se conseguir a pacificação e civilização desta e de outras barbaras raças de indios, que tanto merece o meu cuidado, consiste em se fazerem transitaveis por muitas differentes estradas os extensos bosques em que se acham abrigados, afim de que por toda a parte hajam de encontrar atractivos da civilização, sendo convidados com bravura ao reconhecimento e sujeição às Minhas leis, e castigados promptamente os que commetem hostilidades.
Como exposto acima, a idéia de projeto civilizatório, o desejo de incorporação das sociedades indígenas às malhas da empresa colonial existe. De qualquer forma, transparece o terror quanto às possíveis incursões do gentio contra o colonizador.
Uma das maneiras de conseguir a pacificação destes povos, segundo o documento: a abertura de caminhos, o que facilitaria a integração e o contato com os índios, bem como a segurança dos viajantes.
Além disso, nota-se que, assim como em relação aos índios, o próprio território é entendido de forma dúbia: ora como manancial de riquezas, não aparente mas em potência dado que o esforço empreendido ainda não fora suficiente para bem aproveitá-lo; ora como o vasto sertão que, além dos recursos infindáveis prometidos, apresenta-se também como o local da surpresa, do inesperado, das armadilhas.
Segundo Haruf Espindola, a investida nas zonas de floresta dos rios Doce, Pomba e Paraibuna teve início apenas na década de 1750, quando foram feitas 344 doações, localizadas junto aos afluentes da margem esquerda do rio Doce, avançando para dentro da zona de floresta, a leste dos núcleos urbanos, penetrando pelo vale dos rios Pomba e Paraibuna.
Todavia, quando teve início a fase de retração da economia do ouro, também ocorreu uma queda do número de doações nessas áreas, aumentando o número de concessões novamente nas duas décadas finais do século XVIII, acompanhando o movimento de expansão da pecuária na capitania.
Durante os anos de 1760-80, esta região esteve no centro das preocupações dos governadores de Minas Gerais e muitas Câmaras contribuíram a sua colonização, fornecendo homens, armas e munições para combater os índios que habitavam as florestas do vale do Rio Doce.
Não obstante esses esforços para melhor conhecimento do leste mineiro, foi somente em fins do século XVIII e durante o século XIX que o nível de informações sobre a região melhorou.
O aumento no volume e qualidade dessas notícias se deveu muito aos esforços empreendidos por diversas Câmaras – tanto de Minas quanto do Espírito Santo – na organização de expedições, especialmente na bacia do rio Doce.
Os objetivos desses empreendimentos variavam: abertura de caminhos, prospecção mineral, combate ao gentio e/ou evangelização e aldeamento destes, mapeamento, dentre outros.
Por outro lado, é possível traçar algumas diretrizes comuns a esses projetos: a conquista dos sertões da América e sua incorporação aos espaços da ordem, a melhoria das vias de comunicação entre as capitanias, o incremento dos negócios (expansão agrícola, do comércio, da mineração, etc.) e o estabelecimento de povoações e aldeamentos.
Em 1800 foi assinado o Auto de demarcação dos limites entre a capitania de Minas Gerais e a do Espírito Santo.
Assim constava:
[...] foi assentado por todos que a bem do real serviço do principe real nosso senhor, e cumprimento de suas augustas ordens e arrecadação dos direitos reaes, havendo- se de demarcar os limites das duas capitanias confinantes, fossem esses pelo espigão que corre do N. ao S. entre os rios Guandú e Main-Assú, e não pela corrente do rio, por ser esta de sua natureza tortuosa e encommoda para a boa guarda: que do dito espigão aguas vertentes para o Guandú seja districto da capitania ou nova provincia do Espirito Santo, e que pela parte do N. do rio Doce, servisse de demarcação a serra de Souza que tem a sua testa elevada defronte deste quartel e porto de Souza, e delle vae acompanhando o rio Doce até confrontar com o espigão acima referido ou serreta que separa a vertente dos dous rios Main-Assú e Guandú, e que assim ficava já estabelecido neste porto de Souza em que se termina a facil navegação do Oceano, o destacamento e registo da nova provincia, commandado por um alferes de linha, um cadete, um cabo e dez soldados de linha, um cabo de pedestres e vinte soldados, uma peça de artilharia de tres, montada em carreta de ferro e municiada de polvora, bala e metralha [...]xxxv [grifos nossos].
Nesse mesmo documento podem também ser detectados alguns dos objetivos que motivaram as expedições na Bacia do Rio Doce e adjacências, anteriormente mencionadas: melhoria da navegação entre as capitanias limítrofes, combate ao gentio e segurança dos caminhos, incremento dos negócios.
De qualquer forma, há que se considerar na análise destas notícias sobre a ocupação e a realização de benfeitorias no leste mineiro - sobre os quais temos notícias pela documentação oficial - o caráter ideal de muitos deles.
Entre o planejamento e a realização efetiva de medidas que melhor equipariam os caminhos e as populações desta região observa- se distância considerável.
Carta enviada ao Príncipe Regente D. João pelo governador da Capitania do Espírito Santo, Manoel Vieira de Albuquerque Tovar, em julho de 1810, por exemplo, trazia inúmeras sugestões de medidas que poderiam facilitar a navegação pelo Rio Doce e adjacentes, dando impulso assim ao comércio, agricultura, mineração e povoamento de partes desta capitania e a de Minas Gerais.
Muito prontamente, o rei respondera à Tovar, dando pleno apoio à seus planos, o que não significou, contudo, a execução do projeto.
Em 1801, foi realizada a primeira demarcação entre Minas e o Espírito Santo, quando foram produzidos os primeiros documentos cartográficos mais precisos da área, o que não garantiu, contudo, o fim das incertezas.
De qualquer modo, existiu um esforço sistemático desde então para o detalhamento das informações sobre a região, especialmente através da confecção de itnerários geográficos e relatórios sobre as estradas e caminhos que ligavam as capitanias de Minas Gerais e do Espírito Santo.
Igualmente notório é o esforço dos governos locais, especialmente o capixaba, na redução de índios e criação de aldeamentos, como meio de levar a cabo uma espécie de “projeto civilizatório” que, embora travestido de inúmeras roupagens e discursos sobre as vantagens para o reino e para os próprios índios de uma aproximação com o homem branco, em última instância buscava inserir o gentio na sociedade colonial como mão-de-obra disponível em uma área de baixa densidade populacional e como fator contributivo – não mais ameaçador - ao avanço da ocupação dos sertões da América portuguesa.
Pela falta de informações em relação à definição das fronteiras de Minas Gerais ao longo do período colonial, especialmente na primeira metade do Setecentos, infere-se o pouco conhecimento dos sertões brasileiros por parte da Coroa.
O que se explica, em parte, pelo fato de a empresa colonial portuguesa concentrar-se, até o século XVII, nas regiões próximas ao litoral. Pouco explorados até aquele momento, os sertões da América Portuguesa constituíam espaços em aberto, sobre os quais poucas informações havia.
De qualquer forma, eram os sertões desconhecidos que muitas vezes serviam de limite entre as circunscrições, mesmo que de maneira muito imprecisa.
Sua submissão aos espaços da ordem, seria uma questão de tempo, a ser determinada, seja pelo quanto à desordem neles instalada pudesse ameaçar a ordem vigente, seja pelas riquezas que viessem a oferecerxxxviii.
Importantes espaços na articulação da rede urbana mineira, os sertões não eram, pois, sinônimo de terra sem valor, desabitadas ou que não oferecessem perspectivas de bons lucros àqueles que investissem na sua exploração.
Por tudo aquilo que representavam de positivo – reserva de riquezas, fonte potencial de receitas, etc. –, estes espaços eram vistos, eles próprios, como territórios suscetíveis de divisão.
Nesse longo processo de demarcação das fronteiras da Capitania de Minas Gerais, que se estendeu para além do período colonial, a lista de elementos determinantes é grande: questões de jurisdição marcaram a configuração e as tentativas de estabelecimentos desses contornos, tanto dos limites mais amplos como os da capitania, quanto dos territórios de termos, evidenciando desse modo disputas internas e externas; as preferências e interesses da Coroa na resolução destes litígios também não podem ser ignorados; os embates no campo da cartografia, nas tentativas de diversas Câmaras em favorecer seus desejos expansionistas pela realização de cartas que baseariam seus argumentos, também compunham estes cenários; distâncias, caminhos, barreiras geográficas estiveram em debate; estratégias de fiscalização e controle, entre outros aspectos, permeavam as discussões, nas quais se buscava uma melhor definição desses limites.
A EXPANSÃO DA FRONTEIRA E A IMPOSIÇÃO DA ORDEM METROPOLITANA
O povoamento de Minas é marcado, a partir da década de 1730, pela expansão do povoamento dos centros em direção às periferias da capitania, movimento que se intensifica
na segunda metade do século.
Mas apesar das grandes distâncias que geralmente os separavam dos centros mais antigos, os novos estabelecimentos eram rapidamente englobados pelas circunscrições eclesiástica e civil.
A anexação de frentes pioneiras permitia, entre outras coisas, aumentar o poder político e econômico das autoridades locais.
Ao favorecer a ampliação de seus territórios de jurisdição, as Câmaras e/ou a própria capitania aumentava a sua capacidade de arrecadação de tributos. Significava também, no caso da derrama, que um número maior de pessoas seria responsável pela cobertura da taxa extra, diminuindo assim o valor per capita.
O que se constata, pois, é que as políticas de expansão territorial engendradas pelos governadores ao longo do século XVIII foram, em grande medida, motivadas pelas condições fiscais particulares às quais as populações das Minas estavam sujeitas.
De 1735 a 1750, por exemplo, a Coroa impôs o sistema de Capitação, que consistia no pagamento de um valor fixo por escravo que deveria ser pago por toda a população, mesmo sobre os que não se dedicavam à atividade mineradora.
Implantado como meio de combate ao contrabando do ouro, esse sistema causou, todavia muitas reclamações.
Nesse novo sistema, o aumento da receita fiscal não dependia, pois, somente da quantidade de ouro extraída, mas principalmente do número de habitantes economicamente ativos que estivessem sob a jurisdição de Minas Gerais.
Daí que, ao longo dos anos de 1740, os governadores se esforçaram por garantir posse dos estabelecimentos minerais e agrícolas fundados pelos habitantes das regiões fronteiriças da capitania, o que causou inúmeros conflitos com governos vizinhos, notadamente com o de São Paulo.
De 1750 em diante a situação se modifica um pouco com a mudança do sistema de recolhimento de tributos nas Minas: a capitação é substituída pelo sistema do Quintoxl. Até o ano de 1762 a quota anual mínima de 100 arrobas exigida pela Coroa foi completada – até superada em alguns anos. Após essa data, ela não fora alcançada novamente. Inciou-se então uma nova fase na gestão de Minas, em que o controle das fronteiras foi objeto de uma política sistemática inaugurada por Luiz Diogo Lobo e seguida por seus sucessores.
Desde então foram organizadas inúmeras expedições a fim de garantir jurisidição sobre diversos arraiais situados nas regiões fronteiriças e povoar os sertões periféricos da capitania.
O objetivo era claro: a incorporação de novas terras ao território de Minas buscava alargar o número de contribuintes e, por conseqüência, evitar a derrama.
A expansão dos territórios da capitania poderia significar também a descoberta de novas minas, a expansão da agricultura e da circulação de mercadorias, aumentando assim a arrecadação dos Registrosxli mineiros.
Essa política expansionista não veio responder unicamente aos interesses metropolitanos, mas fez frente igualmente a interesses particulares: interesses pecuniários, de promoção social, “do mesmo modo que pelo gosto pela aventura, que fazia parte da formula mental dos homens daquela época, capazes de reinventar o Eldorado de forma anacrônica”.
De qualquer forma, à conformação das fronteiras da capitania é indissociável o movimento de alargamento dos instrumentos de governo sobre a população das minas. Algumas das formas de marcar e assegurar as conquistas eramo estabelecimento de Registros e Presídios, conjugada á ação de guardas e patrulhas. Mas existiam outras: a fundação de paróquias contribuiu bastante para a legitimação da jurisdição sobre muitos arraiais fundados nos confins da capitania; a nomeação de oficiais e a tomada de territórios por força militar são outros elementos constantes em diversos processos; prestígio político e os interesses régios no decorrer das disputas são outros dois ingredientes.
O PAPEL DA CARTOGRAFIA NA DEFINIÇÃO DAS FRONTEIRAS MINEIRAS
A necessidade de mapeamento da região das minas se evidenciou desde o começo do povoamento e exploração da região. Com relação à primeira metade do século XVIII, as cartas produzidas sobre o território das minas são, via de regra, rudimentares.
Informações imprecisas, pouco detalhamento, espaços incógnitos: são algumas das características da cartografia produzida na época. Na maioria são meramente esquemáticas, dado que as pessoas não tinham conhecimento suficiente sobre a região.
Na falta de profissionais especializados, a feitura desses documentos ficou a cargo principalmente de sertanistas, viajantes e agentes do governo que realizavam anotações e croquis ao longo das viagens pela região.
Os produtos desses esforços foram de vários tipos: notícias de viagem, itinerários geográficos, dentre outros.
Exceção a esse quadro são os trabalhos realizados pelo italiano Domenico Capacci (1694-1736) e o português Diogo Soares (1684-1748), os chamados “padres matemáticos” – ambos jesuítas.
Eles foram contratados pela Coroa lusa e enviados à América a fim de executar um projeto cartográfico ambicioso, denominado Novo Atlas da América Portuguesa, cujos objetivos constam em provisão régia de 18 de novembro de 1729.
Especificamente sobre a região das Minas, os padres matemáticos produziram quatro mapas que cobrem as regiões de exploração do ouro e as novas descobertas dos diamantes do Serro Frio.
Os mapas não foram totalmente finalizados, faltando datas, títulos, assinaturas e partes não acabadas nos corpos dos mesmos.
Apesar disso, podem ser atribuídos a Domenico
Capacci e Diogo Soares, especialmente pelo fato de serem orientados pelo meridiano do Rio de Janeiro.
A cartografia produzida sobre as minas no período colonial se prestou a dois objetivos principais. Em primeiro lugar, propiciar a administração mais eficiente dos negócios do Reino.
Nesse sentido, os documentos produzidos foram importantes instrumentos de gestão, organização e, sobretudo, controle do território e de suas riquezas.
A segunda função: fornecer elementos para a definição de circunscrições, particularmente na medida em que os conflitos pelo controle de territórios se multiplicavam – fossem eles entre Câmaras, capitanias ou mesmo entre a Coroa portuguesa e a espanhola, visto que os problemas de definição de fronteiras atingiam os negócios portugueses na América em diferentes níveis.
De finais da década de 1740 até meados da década de 1770 foi tímida a produção cartográfica sobre a Capitania de Minas.
Material notável só será apresentado em 1778, por José Joaquim da Rocha: um conjunto de documentos sobre os contornos gerais de Minas Gerais e cada uma das Comarcas da capitania: Rio das Mortes, Sabará, Vila Rica e Serro do Frio.
Trata-se de um conjunto articulado de mapas da Capitania que apresentam os elementos paisagísticos e da organização social do espaço, a saber: cidades, vilas, paróquias, capelas, fazendas, registros, guardas e patrulhas de soldados, aldeias de gentio e estradasxlvii.
Os documentos produzidos por Rocha, assim como outros que o precederam, encontram-se ligados à questão da ampliação do conhecimento geográfico sobre a capitania de Minas Gerais, objeto sistemático de políticas da Coroa e de governos locais ao longo do século XVIII, em razão dos bens minerais de seu território e, concomitantemente a isso, a necessidade de controlar e bem gerir a produção dessas riquezas.
Embora tenham contribuído para o melhor conhecimento do território mineiro, essas cartas produzidas ao longo do século XVIII não foram suficientes para estabelecer definitivamente os contornos exatos da capitania, que ainda se modificariam bastante até sua conformação atual, principalmente pela incorporação do triângulo mineiro à Capitania de Minas Gerais, em 1816.
Realizado este esforço introdutório, depreende-se o caráter conflituoso do processo de delimitação das fronteiras da Capitania de Minas Gerais. Não bastassem as disputas com os governadores das capitanias limítrofes, preocupados em manter e expandir seus domínios, influências e ganhos sobre as mais férteis áreas de mineração, constatamos, conforme mencionado anteriormente, também a ocorrência de disputas entre Câmaras mineiras, num processo de ocupação e definição sobre os sertões da própria capitania
Outro ponto importante na consideração destes conflitos diz respeito aos interesses particulares envolvidos. Aos desígnios da Coroa muitas vezes opunham-se os moradores das franjas da capitania, que não viam com bons olhos iniciativas da Coroa que pudessem significar maior controle sobre suas terras.
A morosidade dos processos de delimitação dos contornos da capitania merece igualmente nossa atenção.
Paralelo a isso cabe investigar as contradições da Coroa nesse jogo, na medida em que, além dos argumentos, digamos, de ordem objetiva (a boa administração, por exemplo), estavam em disputa interesses e preferências da metrópole no modo de condução e resolução dessas brigas travadas entre as autoridades responsáveis pela condução dos negócios da Coroa no continente americano.
Marcado por avanços e recuos, enfim, por posições instáveis, sabemos, contudo que este tipo de estratégia não era novo no caso da Coroa portuguesa.
A obtenção de informações sobre os negócios do Reino por fontes variadas interessava à Coroa – distante milhares de quilômetros de suas possessões – na medida que possibilitava a confrontação de argumentos e notícias muitas vezes díspares e contraditórias sobre um mesmo assunto.
E na resolução desses conflitos pela posse de territórios
delimitar fronteiras seria apenas um primeiro passo, que implicaria, na seqüência, a instalação de todo um aparato administrativo, judiciário e militar mínimo necessário para suprir as necessidades de uma população, muitas vezes reduzida, e que, até então, eram resolvidas, bem ou mal e apesar das grandes distâncias, em instâncias instaladas em vilas sob a jurisdição de outra capitania (MORAES, 2005, p. 248).
Problema de difícil equacionamento, a definição das feições da capitania do ouro foi, portanto, um processo longo e conflituoso, em que estiveram em jogo interesses desde os mais localizados, até os que diziam respeito às diretrizes do governo luso para a boa administração de suas colônias no além-mar.
Até alcançar suas feições coloniais finais, as fronteiras de Minas foram forjadas no desenrolar de inúmeros conflitos.
O século XVIII estabelecera as referências básicas de seu território, mas seriam apenas os séculos posteriores os que conformariam definitivamente o território das Minas Gerais.
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