A Religião do Concílio Vaticano II - Parte III
Orlando Fedeli
PARTE III - A MODERNIDADE E O VATICANO II
Nota do site Montfort
Publicamos, hoje, este trabalho sobre a Maçonaria e o Vaticano II – Capítulo V da III parte do estudo A RELIGIÃO DO VATICANO II-- O PECADO DE ADÃO – A MODERNIDADE E O VATICANO II, que estamos editando, por causa do comunicado do Grande Oriente de França, conclamando os maçons a resistirem ao retorno do “integrismo” e do “religioso”, que estariam ameaçando as conquistas do iluminismo, especialmente o laicismo, a separação entre a Igreja e o Estado.
Sem dúvida, esse Comunicado do Grande Oriente, já publicado no site Montfort (Orlando Fedeli - "Lobos uivam contra Bento XVI" ), significa uma contraposição da Maçonaria ao Papa Bento XVI, pela retorno que Bento XVI está realizando para posições anteriores ao Vaticano II.
CAPÍTULO V
OS HOMENS DE BOA VONTADE E O CONCÍLIO VATICANO II
Teria sido o Concílio Vaticano II o resultado de um acordo secreto entre membros da alta cúpula do Vaticano e a Maçonaria?
I - Ficção?...
Numa banca de livros usados — onde se encontram normalmente obras gastas e sem valor, mas onde também, por vezes, se pescam pérolas raras, caiu-me nas mãos, a preço ridículo, um livro com uma estranha ilustração na capa. Era uma foto do princípio do século – parecendo até ante diluviana – retratando um desfile de senhores sisudos, fazendo alas a um estandarte enorme. Todos portavam um como que avental e insígnias. A imagem me fazia lembrar, não tão vagamente, desfiles mais modernos realizados em São Paulo...No viaduto do Chá. Há uns quarenta anos...
Era a foto de um desfile maçônico, provavelmente em Paris, na apodrecida e horrível “Belle” Époque... E o livro, que ela ilustrava, era de Jules Romains (1885-1972), famoso literato francês que alcançou a glória da Academia Francesa de Letras. Uma Academia de portas estreitas. O que é bem diferente de nossa, cujas portas são tão largas, que por elas passam até mesmo ex-presidentes e políticos, sem qualquer valor literário... ou político...
Jules Romains escreveu uma série de 27 volumes sob o título genérico e misterioso de “Les Hommes de Bonne Volonté” (Os Homens de Boa Vontade). Todos esses volumes foram produzidos entre 1927 e 1947, e analisavam a sociedade francesa, de 1908 a 1932.
O volume que me caiu, por feliz acaso, entre as mãos desanimadas diante de uma banquinha de livros usados, tinha um sub título bem curioso: “Em Busca de uma Igreja”. Sub título que o tornava ainda mais interessante, pois que lançava alguma luz no título geral e misterioso de “Os Homens de Boa Vontade”. (Jules Romains, Les Hommes de Bonne Volonté – Recherche d’une Église”, Flammarion, Paris, 1958).
Alguma luz, sim, porque essa expressão -- “Homens de Boa Vontade”, -- me lembrava o apêndice que se agregou ao endereçamento das Encíclicas papais, depois que o Cardeal Roncalli se tornou João XXIII... (Roncalli vivera em Paris, como Núncio, entre 1944 e 1953, quando se tornou Patriarca de Veneza. Foi exatamente durante esse tempo de nunciatura de Roncalli em Paris, que Jules Romains entrou para a Academia Francesa).
Até João XXIII – segundo a imprensa, um Papa de “boa vontade” para com o Mundo Moderno, anatematizado por Pio IX na derradeira condenação do Syllabus – até João XXIII, os Papas dirigiam suas encíclicas “Aos Cardeais, Patriarcas, Arcebispos e Bispos em Comunhão com a Sé Apostólica, assim como a todo o clero e a todos os fiéis católicos”. João XXIII, na “Pacem in Terris”, foi o primeiro a mudar esse endereçamento, acrescentando à saudação tradicional uma menção às “pessoas de boa vontade”:
"Aos veneráveis irmãos patriarcas, primazes, arcebispos, bispos e outros ordinários do lugar em paz e comunhão com a Sé Apostólica, ao clero e féis de todo o orbe, bem como a todas as pessoas de boa vontade".(João XXIII, Pacem in Terris).
Que, portanto, não estavam incluídos nem mesmo entre os que eram fiéis. “Ergo”, eram ou hereges ou ateus.
Quem seriam então essas misteriosas "Pessoas de Boa Vontade"?
Seriam essas pessoas, ou “Homens de Boa Vontade”, os comunistas? Ou seria ainda um outro grupo ainda mais misterioso?
Paulo VI continuou essa nova forma de saudação e direcionamento de encíclicas, escrevendo na Populorum Progressio:
“Aos Bispos, Sacerdotes , Religiosos, fiéis e a todos os HOMENS DE BOA VONTADE” ( Negrito e caixa alta são de minha responsabilidade).
O livro de Jules Romains poderia elucidar a identificar esse misterioso grupo dos “Homens de Boa Vontade”.
Comprei o livro.
Como é costume lógico, fui ver, antes de tudo, o índice. E lá, meus olhos logo caíram sobre o título do capítulo XXVII: “Mistérios da Franco Maçonaria” .
Foi o primeiro que li. E o capítulo tratava das cerimônias maçônicas, mostrando-as sob um certo ridículo. Mas, esse capítulo apontava para outro, no qual se trataria dos fins da sociedade secreta, que um certo Lengnau conheceria bem.
Fui imediatamente a este outro ponto do livro, saltando capítulos inteiros, para entrar, -- sem ter sido convidado--, junto com o personagem principal, Jerphanion, no apartamento do tal Lengnau, em Paris, em 1908 ou 1910, mais ou menos.
Era um apartamento espaçoso, junto a Notre Dame, que se podia entrever através dos ’’voiles” da janela. (Que saudades de Notre Dame !...).
O dono da casa se fez esperar um tanto.
Como explicava o livro, ele era --- o tal Lengnau – “não um Papa da Maçonaria, nem sequer um de seus grandes pontífices, visto que ele se recusava a exercer qualquer poder, mas uma de suas mais altas autoridades espirituais; a mais alta, talvez” (Jules Romain, Les Hommes de Bonne Volonté -- À la Recherche d'une Église, Flammarion, Paris, 1958, p. 274).
E, enquanto esperava a chegada do dono da casa, Jerphanion, indiscreta, mas prudentemente, deu uma espiada nos títulos dos livros que abarrotavam as estantes da sala. Porque, afinal de contas, ...”Dize-me o que lês, e dir-te-ei quem és”.
E os títulos me eram imensamente elucidativos!
” ... Martinès de Pasqually, Traité de la Réintégration des êtres...Matter, Saint Martin, le Philosophe Inconnu...Mesmer, Le Secret Dévoilé..., Monnier ( Jean Joseph) De l’Influence attribuée aux philosophes, aux Francs – maçons...Mynsicht (Hadrien von) Aureum Saeculum redivivum... Mystère des Sociétés Secrètes..., sem nome de autor.”(Jules Romain, op. cit., p. 274).
O homem era, evidentemente, um sequaz da Maçonaria mística, daquela “Maçonaria ao quadrado”, como a denomina Georges Gusdorf, em seu livro sobre o Romantismo...
E, se ele lia Saint Martin e Martinès de Pasqually, ele era também um admirador do maçon Joseph de Maistre, conclui eu.
(O personagem com quem entrei, não concluiu nada. Ele não conhecera, pelo visto, tradicionalistas admiradores de Joseph de Maistre, o maçon Eleito Cohen Joseph a Floribus...).
Afinal, na página 276 do livro, o dono do apartamento adentrou a sala de estar de sua residência, para receber o personagem Jerphanion, aquele que buscava uma “Igreja”. (Eu, que me intrometera sem ser convidado, e que não procuro uma Igreja, porque sou Católico Apostólico Romano, fiquei só “escutando”, isto é, lendo com atenção redobrada o que o interessantíssimo livro me dizia ).
Jerphanion queria conhecer os verdadeiros fins da Maçonaria, para saber se era ela a “Igreja” que buscava.
É claro que na vida real, o que o romance diz ter acontecido, não é possível ocorrer: que um maçon de alto grau, se abra sobre os fins últimos da Maçonaria, ao primeiro Jerphanion curioso, que indaga dos fins de uma sociedade secreta, para saber se lhe convém entrar nela. Isso seria absolutamente absurdo. Mas, se os absurdos acontecem, por vezes – e cada vez mais freqüentemente -- na vida real, porque não poderiam acontecer nas páginas de um romance?
Pois o tal “pontífice espiritual “da Maçonaria se abriu a Jerphanion, sem perceber que eu, silenciosamente, sublinhava o que era mais importante da conversa, para vir a editá-la, aqui na Internet, quase um século depois.
Pois vejam que coisas interessantes disse o maçon Lengnau.
Ele fez quase uma profecia, tanto o que ele contou, se lê, hoje, nas linhas – e especialmente nas entrelinhas -- do noticiário dos jornais, ou melhor, da Internet.
Claro, para quem sabe ler nas entrelinhas.
Coisa que não se ensina nas escolas, e nem por meio de cartilhas...
Que bom foi ter aprendido a ler fora das escolas !...
Inicialmente, Jerphanion contou de sua decepção, acontecida no capítulo XXVII, quando lhe narraram os rituais da Maçonaria. Ao que Lengnau, sem se perturbar ao mínimo, respondeu, dizendo que não é difícil ridicularizar um ritual, e até mesmo o ritual católico.
E prosseguiu Lengnau:
“Já o fizeram mais de uma vez. E se errou ao fazer isso. Se há alguma coisa a atacar no catolicismo, não são os cerimoniais, que são magníficos...”
[Ah! se esse inimigo de Deus, maçon da Belle Époque, assistisse a Missa da Aeróbica de Jesus do padre Marcelo Rossi, em São Paulo, no ano 2.000 ! Até ele se escandalizaria com o que fazem, hoje, certos padres que realizam profanações com as quais nem os anti clericais mais raivosos teriam sonhado, para ridicularizar a Missa ! ... Se esse maçon de romance tivesse sabido do que foi capaz a “criatividade” dos padres, introduzida por Paulo VI e por Monsenhor Bugnini, na chamada Nova Missa ! O Cardeal Ratzinger protestou contra essa anarquia de “criatividade”... E o próprio Papa João Paulo II, na encíclica Ecclesia de Eucharistia, graças a Deus, condenou certos abusos que acontecem em Missas-Show, e que Bento XVI, hoje, quer suprimir].
Voltemos ao livro, que a realidade é pior que a imaginação !
Lengnau contemplava, em sua memória, os rituais católicos a que, um dia, assistira:
“... e ele [Lengnau] acrescentou, levantando os olhos e acariciando com o olhar um espaço longínquo: “[cerimoniais] que são incomparáveis... Não. É o que os rituais querem dizer, é o conteúdo dos ritos, é o que se esconde sob os símbolos... É, a filosofia da vida e a metafísica do Catolicismo ... Sim... Tem--se sempre o direito de atacar ou de admirar, quanto ao fundo. O que é absurdo, é rir-se, quanto às formas...(...) Isso é ignóbil ! Isso desonraria o anti clericalismo. Eu não conheço nada mais belo no mundo, nada de mais emocionante do que o rito da comunhão... Se eu o repilo, é por causa do sentido escondido... Há sempre um sentido oculto... E toda a questão está nisso. Saber se nós aceitamos ou não o sentido oculto; se ele nos dá, ou não, a resposta que nos é necessária” (Jules Romain, op. cit., p. 278)
E eu continuava a sublinhar e anotar o que me parecia mais importante e interessante da conversa... Bem calado. Caladinho. Caladíssimo !
Enquanto isso, prosseguia Lengneau:
“Todos os ritos da maçonaria, eles, giram em torno da idéia de Construção. Eis aí. Se o senhor compreendeu isto, o senhor terá tudo compreendido.” (Jules Romain, op. cit., p. 280).
“Todos os pormenores de roupas e de cerimônia, que lhe contaram, e que talvez lhe fizeram sorrir, todas as particularidades de linguagem, as fórmulas empregadas, os nomes dos graus, a decoração das salas, e assim por diante... pois bem , o senhor compreende, tudo isso forma uma espécie de drama religioso, no sentido em que o entendiam os antigos, e é o drama da Construção, assim como a Missa é o drama do sacrifício...”(Jules Romain, op. cit., p. 281).
Esse Pontífice da Maçonaria da horrenda Belle Époque entendia melhor o que é a Missa—a renovação do sacrifício do Calvário—do que muitos padres, e até que muitos Bispos, hoje.
Prosseguindo, Lengnau fez uma muito interessante síntese da História dos últimos séculos para Jerphanion:
“Há uma coisa, que sem dúvida não lhe escapou, mas à qual talvez o senhor não tenha especialmente refletido...Se o senhor se esforçar por contemplar com um novo olhar o movimento da humanidade há dois, três, e mesmo quatro séculos, será que o senhor não fica impressionado com o que há, apesar de tudo, de absolutamente novo ?...”
“Nós não prestamos atenção a isso, porque estamos habituados, e também porque nós estamos mergulhados nisso... Mas todos esses movimentos que se produziram aqui e acolá, essas aspirações que os homens jamais haviam tido, essas reclamações, essas exigências... O uso de certas palavras contribui a nos tornar indiferentes, distraídos... a palavra progresso, por exemplo... ou palavras como liberdade, emancipação, democracia, fraternidade humana... Ou então ainda nós pensamos demais no que tal acontecimento histórico teve de... entumecido e de excepcional, ao vulto que as circunstâncias lhe deram, ao que ele comportava de violência impossível de sustentar... a Revolução de 1789... ou a explosão de 1848 através de toda a Europa... nós não sentimos suficientemente que esses fatos fizeram parte de um trabalho conduzido continuamente durante séculos, e por toda a parte... Eu lhe garanto que se se conseguisse ver desde muito alto esse movimento de conjunto a partir do final da Idade Média, sem a ajuda de nenhuma amplificação oratória, ficar-se-ia espantado, e se teria uma grande emoção... Ver-se-iam tantos fatos, isoladamente estranhos ou maravilhosos... servos da gleba que se tornam homens livres... hereges que se cessa de queimar... nobres que abandonam seus privilégios...homens brancos que lutam para que escravos negros sejam arrancados da ignomínia... ricos que se interrogam sobre seus direitos e se escusam de suas riquezas... grandes impérios militares que proclamam a necessidade da paz e da união entre os povos... Não pense que eu passe por cima dos recuos, dos desastres, nem que eu tome por prata de valor as malícias dos espertalhões, as mentiras dos hipócritas. Mas eu seria ainda mais cego, se eu recusasse ver a convergência dessas mudanças extraordinárias” (Jules Romain, op. cit., pp. 281-282).
Lengnau não afirmava que tudo o que aconteceu na História, desde o final da Idade Média, tinha sido feito pelos maçons, como os direitistas obcecados pelo problema das Sociedades Secretas tem a mania de pensar, vendo um maçon atrás de cada fato histórico, assim como paranóicos imaginam um inimigo escondido atrás de cada poste. Mas, ele mostrava que havia uma certa misteriosa unidade no trabalho desenvolvido nos últimos séculos. E que se visava um fim...
Lengnau colocou uma condição: “se se conseguisse ver desde muito alto”...
Desgraçadamente, hoje, poucos conseguem olhar a História “desde muito alto”... O que predomina é a visão rasteira que não consegue ver nada acima da grama... Comestível.
“Se o senhor perceber isso, o senhor compreenderá o que os maçons denominam a Construção do Templo. Eu não lhe digo que todo o trabalho já realizado pela humanidade neste sentido, tenham sido os maçons que o fizeram. Não. Mas eles nunca estiveram ausentes. E foram bem eles que na multidão dos trabalhadores, sem isto por demais esparramados, muito facilmente demais desanimados, contribuíram com o plano, a tenacidade, a coesão fraternal, desde tempos já longínquos.” (Jules Romain, op. cit., p. 283).
A seguir, Lengnau, em visão da altura de moita, declarou sua convicção de que as origens da Maçonaria lançam suas raízes até os construtores de Catedrais, na Idade Média. Dos construtores de Catedrais teria saído a “Ordem que ia se dar por tarefa a Construção do Mundo. E note que, na época Moderna homens tão grandes e tão diferentes quanto um Goethe, um Saint Simon, um Augusto Comte, um Hugo (...) não teriam feito o que fizeram se não tivesse existido a Maçonaria por trás deles, mesmo quando individualmente eles não eram maçons.”(Jules Romain, op. cit.,p. 283).
Jamais “teriam feito o que fizeram se não tivesse existido a Maçonaria por trás deles, mesmo quando individualmente eles não eram maçons”.
Vá se explicar isto para certos intelectuais, mesmo direitistas, com visão de formiguinha e que julgam que a arte nada tem a ver com religião ou com filosofia...
Tratando das ações mais importantes realizadas pela Maçonaria na História, Lengnau fez uma observação importante: do mesmo modo que a escavação de um buraco é necessária, apenas temporariamente, ao se fazer um edifício, assim também certas ações na História tem apenas uma importância circunstancial, para a Construção do Mundo Novo, para o Novus Ordo Saeculorum, como se pode ler na nota de um dólar.
Ou na Mensagem de Natal de Pio XII, em 1939, ao tratar da Nova Ordem do Mundo, segundo o que Roosevelt escrevera a seu “Old and dear friend”, o Papa Pio XII...(Cfr. Pio XII, Mensagem de Natal de 1939).
Disse Lengnau:
“O sufrágio universal, por exemplo,... se eu o tomo isoladamente, eu tenho o direito de preferir a ele, afinal de contas, um governo hierárquico, aristocrático... Tudo muda, no momento em que se descobre que este ideal laico, no horizonte limite, não é senão uma das etapas de uma das fases da Grande Obra. A profundidade das coisas aparece, e, também, seu laço, sua necessidade. As objeções de pormenor, os pequenos ridículos, tudo isso se esvaece“ (Jules Romain, op. cit., p. 284).
“(...) O senhor irá me dizer que tudo isso não lhe explica o que é a Grande Obra, o que é a Construção do Templo”.(...)
“Pois bem, a Grande Obra que a Maçonaria busca realizar há séculos, é a unificação total da humanidade”(...) “Total... Em todos os sentidos, e em todos os planos. Mesmo no plano místico” (...) [Os destaques são nossos].
“Nós sempre mantivemos contato com os místicos, com o ocultismo; e nós continuamos [a manter esse contato ]. Há uma corrente contínua desde a Cabala até nós...”(...)
“Unificação total da humanidade. Eu creio que o senhor é capaz de sentir o peso e a densidade destas palavras” (Jules Romain, op. cit., pp. 284-285. O destaque é nosso).
(...)
“Eu lhe disse, mesmo no plano místico. Eu insisto: a unidade em foco vai além da organização política, material, mesmo racional do gênero humano... Ela a ultrapassa, ela a transcende, e ao mesmo tempo a arrasta atrás de si como um pescador que puxa a sua rede...” (Jules Romain, op. cit., p. 285).
A “unificação total da humanidade”...
Pois não é isso que, na Lúmen Gentium, se colocou como fim da Igreja?
“A Igreja, em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus, e da unidade do gênero humano”( Vaticano II, Lumen Gentium, n0 1).
E, rindo, continuou Lengnau:
“O programa laico e republicano!... O senhor pode agora lhe dar o lugar que lhe convém no conjunto... Um episódio... O senhor percebe também que as pretensas audácias deste programa não são uma grande coisa ao lado da...”
(...)
“Veja bem! Nós temos entre nós homens da política, maçons convictos... Mas sua profissão os obriga a viver com o nariz metido nos acontecimentos... Eles perdem o costume de ver através de longas perspectivas... Eles ficam atrelados corajosamente, digamos, ao programa radical... Agora, eles vêem à sua esquerda o socialismo, com fórmulas muito avançadas em matéria de internacionalismo, por exemplo. Então eles se sentem incomodados. Eles não desejariam passar por retrógrados. Mas, de um outro lado, se adotassem essas fórmulas internacionalistas, eles teriam a impressão de ceder a uma inclinação, a uma vertigem; de se deixar levar pela esquerda até a extrema esquerda, simplesmente pelo medo de gritar menos alto que o vizinho, ou por uma espécie de arrastamento mecânico. No fundo, uma vez o programa democrático e laico quase realizado, eles gostariam bastante de poder se deitar sobre as posições conquistadas. ( ...) O senhor conhece Rothweil? Ele não perdeu talvez a lembrança de um ideal mais longínquo. Mas, praticamente... Eu o vi com lágrimas nos olhos a propósito da Alsácia - Lorena...
“Pois bem, um homem como o senhor percebe imediatamente que considerando o seu objetivo final, a Maçonaria não pode atribuir nenhum valor durável às fronteiras, às pátrias, às nações que ela mesma fundou, a considerar como um recuo provisório o desenvolvimento do sentimento patriótico que se realizou em todos os povos desde há um pouco mais de um século, e o despertar das nacionalidades que foi a sua conseqüência. As audácias do socialismo neste sentido, nós deveríamos não só admiti-las, mas acobertá-las, tomá-las como expressão momentânea, e relativamente tímida, do esforço em direção à Grande Obra que nós estamos encarregados de conduzir através dos séculos, com vistas muito mais vastas e profundas. Nós deveríamos nos dizer: o socialismo é um de nossos instrumentos históricos. Pouco importa que ele não tenha consciência disso. O anti patriotismo que se destaca dele, nós temos que nos servir dele como nós nos servimos precedentemente do anti clericalismo... Eu o espanto talvez algum tanto ? “ (Jules Romain, op. cit., p. 287).
(...)
E prosseguiu Lengnau:
“Eu me pergunto se depois de se ter desembaraçado de velhos ídolos, a humanidade recente não se criou outros, que será preciso derrubar. Sim, a palavra de ordem do século XX não deverá ser um “Esmaguemos o Infame!” com um sentido novo? ”. (Jules Romain, op. cit., p. 288)
E como divagando, Lengnau disse uma coisa surpreendente:
“A Igreja Católica... Ela não tem maior admirador do que eu... Eles são os únicos construtores que houve antes de nós... E, em suma, nós saímos deles... Não foi por nossa culpa se, em certo momento, a Igreja surgiu como um rochedo enorme barrando o caminho. Ah! se ela tivesse podido mudar de espírito, deixar-se penetrar por nós... Se ela tivesse guardado a força, a juventude, se pudesse se ter tornado cada vez mais católica, cada vez mais ecumênica... Porque nossa Grande Obra que é senão a catolicidade total ? “(Jules Romain, op. cit., p. 288. O destaque é meu).
“Evidentemente, eu sonho um tanto. Além desse envelhecimento das instituições que as faz incapazes de assimilar e de se transformar, havia oposições profundas... aquilo que chamávamos, agora há pouco, o pessimismo cristão, a condenação da vida... a idéia que eles tem da História do mundo voltada para trás... paraíso terrestre, queda, redenção... enquanto que nós estamos voltados para a frente. O Deus deles, que é velho e zangado, que só pensa em se vingar e em punir, que espera lá no alto, com o raio na mão, apenas a hora de nos reduzir definitivamente a pó, a nós e a nossas obras: solvet saeculum in favilla... não podia evidentemente estar em boa companhia com o nosso [deus], que é jovem, que é mesmo futuro...sim... que nós nô-lo representamos, em todo caso, como um jovem arquiteto, de fronte preocupada talvez, mas de olhos brilhantes, tendo nas mãos seus planos e seu compasso, os pés bem plantados no chão, no meio das paredes que sobem, da alegre nuvem de gesso, da multidão atarefada dos aprendizes, dos companheiros, dos mestres...” (Jules Romain, op. cit., p. 289)
E, referindo-se à acusação de que o deus da Maçonaria é o diabo, ele sorriu, e disse:
“...Alguns de nossos adversários nos acusam seriamente de ser sequazes do diabo... Sim, eles acham que nosso jovem arquiteto apresenta uma semelhança perturbadora com o belo anjo, Lúcifer, Príncipe deste Mundo, cujo grande crime, com efeito, foi o de ter ensinado aos homens a fé em si mesmos, o orgulho de saber e a esperança terrestre... ë divertido, não é verdade ? “(Jules Romain, op. cit., p. 289).
Afinal, Lengnau foi à conclusão:
“Aliás, será bem preciso que em um ou outro momento a questão se acerte entre a Igreja e nós... Eu, veja o senhor, eu tenho a impressão que não é desse lado [da Igreja] que está o inimigo principal... E eu não desespero de fazer cedo ou tarde uma aliança... Será preciso... Ou então a destruição total do adversário “(...) “e, por minha parte, eu não creio muito nisso... ou a aliança, mais ou menos oculta... Nós somos, eles [os católicos] e nós, os únicos soldados do Universal... e também do espiritual, porque o socialismo está todo petrificado de materialismo... Mesmo as dificuldades metafísicas podem se arranjar... Por que o Deus deles não poderia tolerar nosso jovem arquiteto ? Ele só tem que lhe deixar este mundo aqui, e conservar para si o outro mundo... O senhor não acha? “ (Jules Romain, op. cit., p. 289-290. Os destaques são meus).
“O que o senhor lhe oferece, é uma situação de Deus no exílio?” [ retrucou Jerphanion].
“-- Talvez..., mas com grandes honras...
“Não é então verdade que o Deus da Bíblia já abdicou um pouco em proveito de Cristo? Em suma, nós veremos... O senhor sabe, o famoso sonho de ter um Papa, um dia, que seria um dos nossos [um Papa maçon]?...”
“E ele acrescentou num tom de palavra de conclusão:
“Nós já temos muitos Bispos Franco Maçons!” (Jules Romain, op. cit., pp. 289-290).
Eu, que tinha a vantagem de estar ouvindo sem ser percebido, e mais que tinha a imensa vantagem de ter vivido e conhecido os acontecimentos posteriores, estava maravilhado com a penetrante visão do futuro desse homem, visão que se revelava tão exata, que até parecia profética !
Repito as palavras chaves de Lengneau:
“E eu não desespero de fazer cedo ou tarde uma aliança... Será preciso... Ou então a destruição total do adversário “(...) “e, por minha parte, eu não creio muito nisso... ou a aliança, mais ou menos oculta...”
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